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Lutas políticas: a polaridade em choque no pós 25 de abril
Ao cair da noite do dia 25 de abril de 1974 o país assistia, em direto, através da Televisão, à apresentação da Junta de Salvação Nacional. Uma ditadura com mais de 40 anos havia caído sem grande derramamento de sangue.
O poder conquistado ao regime de Marcello Caetano por um grupo de jovens oficiais - a maioria deles capitães (que tinham formado o Movimento das Forças Armadas ou MFA) - havia sido por eles entregue a uma Junta de Salvação, composta por sete militares, todos eles generais, ou almirantes, homens de idade respeitável, probidade e coragem reconhecidas.
Com voz grave e pausada, o general António de Spínola, na sua qualidade de presidente da Junta, leu o Programa do MFA, que previa, no fundamental, a convocação, no prazo de 12 meses, de uma Assembleia Constituinte eleita por sufrágio universal (direto e secreto), a garantia de liberdade de expressão, associação e reunião, o lançamento das bases de novas políticas económica (ao serviço dos mais desfavorecidos e antimonopolistas), social (defesa dos trabalhadores) e ultramarina (neste campo uma política que conduzisse à paz).
O dia 1 de maio de 1974 foi a grande festa: a revolução passou de estritamente militar a civil. Todos se abraçavam; e a presença não reprimida de milhares de bandeiras do Partido Comunista (o qual, legalmente, ainda era proibido) assegurava que o povo iria dispor de "amplas liberdades". É formado o primeiro Governo provisório, chefiado por um liberal, o professor Adelino da Palma Carlos, e do qual farão parte membros do Partido Comunista, Partido Socialista e Partido Popular Democrático, abrangendo-se todo o leque dos partidos democráticos então existentes. A Nação, os seus chefes e as Forças Armadas pareciam indissoluvelmente unidas. Entretanto, essa imagem depressa se começaria a esboroar.
Logo nas semanas seguintes iniciam-se numerosas greves, muitas de carácter económico, outras em que se pedia o saneamento de parte ou de toda a administração de algumas empresas. Os "saneamentos" estendem-se também às escolas e a outros órgãos da administração pública. Entretanto, surgem "saneamentos selvagens", isto é, os que não se limitavam a corrigir prepotências evidentes, mas puniam dirigentes que, por qualquer ato legítimo e necessário, se haviam tornado impopulares. Estas greves e saneamentos eram por vezes reforçados impedindo os gestores de entrar ou sair da empresa.
A ocupação de casas desabitadas constituiu também um tipo de ação que despertaria reações contraditórias. As ocupações iniciaram-se logo no dia 5 de maio de 1974, no Bairro da Boavista, em Lisboa, tendo sido ocupados vinte e três blocos vazios. O direito à habitação é facilmente entendível e desperta o apoio do comum dos cidadãos: a existência de casas fechadas tanto tempo em posse da Câmara quando havia pessoas a morar em "barracas" era entendido como um contrassenso. Todavia, entrar numa casa que não é sua, sem licença, está associado a roubo. Esta sensação agravou-se ainda mais quando as ocupações de casas desabitadas se estenderam a muitas outras zonas. Em Portugal havia um número razoável de proprietários de prédios urbanos, estando muitos desses prédios vazios. A somar a isto, existiam também prédios desabitados que eram pertença de emigrantes, pelo que a simples possibilidade de ocupação desses imóveis despertava reações muito negativas.
A par das ocupações, casos houve em que os arrendatários entenderam que a renda que estavam a pagar era exagerada, tendo decidido, geralmente em concordância com os outros arrendatários do prédio ou do bairro, passar a pagar um quantitativo inferior.
A liberdade recém-conquistada proporcionou a possibilidade de uma discussão franca e aberta dos problemas. No entanto, esta discussão raramente ocorreu, sendo mais frequente o estilo propagandístico. A extinção da Censura não serviu apenas para possibilitar a abordagem livre de temas económicos ou sociais: os cinemas do país, por exemplo, começaram a exibir filmes pornográficos em quantidades industriais.
Por outro lado, a situação em África também exigia decisões rápidas, pois as tropas haviam perdido a vontade de combater, isto quando não apoiavam mesmo, nem que fosse por palavras, os antigos inimigos. Diante deste cenário, o general António de Spínola, que como presidente da Junta de Salvação Nacional tinha sido escolhido para Presidente da República, entendeu que faltava a Portugal um poder com efetiva autoridade, e que tal autoridade - de acordo, aliás, com o constante no programa do Movimento das Forças Armadas - teria que ser legitimada através do voto popular. Até então todas as autoridades derivavam do golpe militar. A solução defendida por Spínola e pelos seus apoiantes, entre eles o primeiro-ministro, o professor Palma Carlos, era a de que se devia proceder, desde já, à eleição por voto popular direto do Presidente da República. Contudo, a cumprir-se à letra o previsto, esta eleição só poderia ter lugar após a aprovação de uma Constituição por uma Assembleia Constituinte - e esta nem sequer tinha sido eleita. Seria um processo demasiado lento. Dado o prestígio de que gozava, a realizarem-se estas eleições, Spínola seria quase certamente eleito. Entretanto, irão surgir conflitos entre este e os elementos mais jovens do MFA, que contestavam as ideias de Spínola e, no fundo, não confiavam nele para conduzir o processo democrático em Portugal (Spínola era por eles considerado estruturalmente autoritário, tendo-se vestido com as cores da democracia por motivos conjunturais e para ser considerado "um salvador da Pátria"), nem para conduzir a descolonização.
Quanto à política ultramarina, a ideia de Spínola exposta no seu livro (publicado pouco antes da Revolução de abril e intitulado "Portugal e o Futuro") era a de Portugal e as suas possessões africanas passarem a constituir uma "comunidade de Estados"; no entanto, essa ideia esbarrava na nula vontade de combater das tropas, que já tinham percebido que as colónias iriam ser entregues, pelo que não se justificavam esforços adicionais. Não deixa, aliás, de ser interessante notar que é o próprio MFA, isto é, os oficiais, que havia decidido fazer a revolução e que o tinha escolhido como chefe da mesma, o seu principal contestatário. As reuniões de oficiais do MFA, realizadas nas várias províncias ultramarinas, fizeram autênticos ultimatos no sentido de se iniciar imediatamente a paz.
No plano internacional, as grandes potências, como os Estados Unidos, França, União Soviética e Inglaterra, tentavam alargar por todos os meios as suas áreas de influência, para o que fomentavam e apoiavam vários movimentos oposicionistas nos países ou regiões que pretendiam dominar. Em todo este processo, Portugal aparecia como um entrave a tais apetites.
Spínola não consegue fazer aprovar a sua ideia quanto à política ultramarina e vê rejeitada a sua pretensão de, através de eleições antecipadas, poder dotar o país de alguma legitimidade democrática. A rejeição desta última provoca os primeiros solavancos na revolução: a queda do primeiro-ministro, o professor Adelino da Palma Carlos, a 9 de julho. É então criado o COPCON (Comando Operacional do Continente) para defender o processo revolucionário; todavia, este iria funcionar como órgão paralelo relativamente às estruturas militares clássicas.
Depois da tomada de posse do novo primeiro-ministro, o coronel Vasco Gonçalves, Spínola vai fazer um apelo à "maioria silenciosa" do país, para que faça ouvir a sua voz e evite a anarquia que se antecipava. Apesar das suas reservas, sobretudo no caso de Angola, Spínola já tinha aceite a hipótese da independência das "Províncias Ultramarinas" através da Lei de 7/74.
A "maioria silenciosa" - um grupo que nunca se identificou - respondendo, pelo menos nominalmente, ao apelo de Spínola, pretendeu realizar, em Lisboa, uma manifestação em seu apoio a 28 de setembro de 1974. As forças de contrapropaganda rapidamente invocaram ser uma manifestação de carácter contrarrevolucionário e o Governo proibiu-a. Dando corpo a essa proibição, grupos de soldados e populares ergueram barreiras nas estradas à volta da capital e revistaram os automóveis, procurando armas. Esta "mistura" de soldados e civis era, do ponto de vista militar, muito grave, pois estes deixavam de estar debaixo da vigilância dos seus superiores hierárquicos, podendo atuar em função do que ia sendo discutido e acordado. Acrescia ainda a agravante de se aliarem a indivíduos estranhos à instituição militar. Spínola tenta proclamar o estado de sítio, o que não consegue, e assim, no dia 30, demite-se.
Os generais Galvão de Melo, Silvério Marques e Diogo Neto serão afastados da Junta de Salvação Nacional, e o cargo de Presidente da República será desempenhado por Costa Gomes.
Até aí, no fundamental "o povo estava unido", estava com o MFA conforme se ouvia nas ruas: "o povo unido jamais será vencido", "o povo está com o MFA", entre outros slogans da época. No 28 de setembro, "o povo" tinha-se mostrado desunido, mas estas feridas são esquecidas enquanto as Forças Armadas se dedicam a "campanhas de dinamização cultural" para explicar à população das províncias o que havia sido a revolução.
No início de 1975 irá ter lugar outra "batalha", que marca, sobretudo, a desunião das forças de esquerda (PS e PCP). Em resumo, discutia-se se para cada atividade económica deveria haver um único sindicato - unicidade sindical - ou se para a mesma atividade poderia existir mais de um sindicato. O Partido Comunista defendia a primeira solução, no que é apoiado pelo Ministro do Trabalho, à altura o major Costa Martins. Para o Partido Socialista, esta "unicidade sindical" apontava de futuro para uma "unicidade partidária", para o partido único, ou seja, um regime idêntico ao da União Soviética e demais países do Leste: a Intersindical, união geral de todos os sindicatos, muito próxima do Partido Comunista, e com o apoio deste, promove uma gigantesca manifestação em defesa da sua posição, acusando o pluralismo sindical de ser uma forma de divisionismo. O Partido Socialista riposta logo de seguida num comício no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. Em número de manifestantes a vantagem pende nitidamente para o lado do partidários da unicidade sindical, mas o estilo aguerrido dos socialistas (Salgado Zenha e Mário Soares) aponta para uma cisão entre o "povo" já muito profunda.
O mês de janeiro será o início, embora tímido, da ocupação de grandes propriedades no Alentejo, algumas delas pertencentes a proprietários absentistas. As noções de latifúndio e proprietário absentista eram incompreensíveis para a maioria dos agricultores portugueses do Ribatejo para norte, que com dificuldade extraíam o seu sustento de pequenas courelas. A "reforma agrária", como será chamada, irá assim ajudar a cavar um fosso entre o Norte e o Sul de Portugal.
A 22 de janeiro grupos esquerdistas atacaram fisicamente o I Congresso do Centro Democrático Social que se realizava no Porto. Nas situações de alteração da ordem, como greves, sequestros, ocupações ou barricadas, recorria-se quase sempre ao Exército e não à Polícia. Mas estes também pertenciam ao povo; por isso, o seu comportamento não era o de atuar contra os manifestantes, mas sim o de procurar discutir com eles, saber quem tinha razão e acalmar as várias partes. De facto, tal como atestado pelos slogans da altura: "Os soldados são filhos do povo" e "soldados sempre, sempre ao lado do povo".
O número de militares que seguiam as teses políticas do Partido Comunista aumentava. Este partido parecia-lhes o único com uma estratégia definida, disciplina, mística, características que se aproximavam das da organização militar. Assim, será frequente assistir-se a casos de militares que declaram, a certa altura, terem feito a sua "opção de classe", o que significava dizer: "Eu era e comportava-me como um fascista, um explorador do povo, mas agora escolhi ser socialista, estar ao lado do povo".
A opção pelo Partido Comunista não era a única: o general Otelo Saraiva de Carvalho defendia o "poder popular" e uma nova forma de organização social em diferentes patamares e a partir das bases, isto é, dos bairros, das empresas, ou seja, um "corporativismo das esquerdas". Melo Antunes, ideólogo da Revolução, e figura respeitada, defende um "socialismo" (não uma social-democracia) em liberdade. Nesta altura, há assim um grupo numeroso de militares que ficam como que inebriados com a ideia de que estão a construir uma nova sociedade.
Em março, dar-se-ia o grande embate. Surge o boato de que se preparava para a Páscoa a prisão e o assassinato de variadas personalidades. Não se sabe como surgiu esse boato, mas seja para prevenir essa "matança da Páscoa", seja porque pouco antes (a 21 de fevereiro) havia sido aprovado no Conselho de Ministros um plano económico que defendia o controlo, por parte do Estado, dos setores estratégicos da economia - como a banca, os seguros, a energia, os transportes e os cimentos - através de nacionalizações ou da criação de sociedades anónimas, o certo é que as forças afetas ao general António de Spínola decidem passar ao ataque. No dia 11 de março de 1975, na Pontinha (Lisboa), tropas paraquedistas cercam o RAL1 (Regimento de Artilharia Ligeira 1), regimento considerado um dos focos máximos da revolta entre militares e onde, de acordo com os atacantes, estariam revolucionários de vários países. Os militares desse regimento, chefiados pelo capitão Diniz de Almeida, defendem-no. O povo, ou parte dele, assistiu à cena. Num interessante diálogo entre o chefe dos atacantes e os defensores do RAL1, transmitido também pela televisão, revela-se a candura desses tempos, e um certo companheirismo que, para além das diferenças ideológicas, unia ainda a generalidade dos militares. Ambos evocam ordens perfeitamente legítimas para atuar: uns para atacar, outros para defender. A legitimidade das ordens contraditórias explica-se pela existência de vários centros de decisão: Estados-Maiores das diferentes Armas, Comandos das Regiões Militares, COPCON. Os paraquedistas acabam por retirar: o golpe tinha falhado e Spínola, disfarçado, foge de helicóptero para Espanha. Vários oficiais são presos.
O contragolpe surge com a velocidade de um raio: numa assembleia tempestuosa do MFA, realizada logo na noite de 11 para 12 de março, vota-se o fim da Junta de Salvação Nacional (que é substituída por um Conselho da Revolução, dotado de grandes poderes); a inclusão, na Assembleia do MFA, de representantes dos sargentos e dos soldados; a realização de uma reforma agrária e a nacionalização das grandes empresas. O Presidente da República, Costa Gomes, irá lembrar o compromisso da realização das eleições para uma Assembleia Constituinte.
O Conselho da Revolução, agora institucionalizado, passa a recomendar ao Governo a demissão das administrações de várias empresas (como, por exemplo, da Sociedade Central de Cervejas e do Banco de Portugal).
As medidas aí aprovadas são passadas de imediato à prática: logo a 14 de março são publicados os decretos originados no Conselho da Revolução e que nacionalizam as bancas e os seguros. Até aí já tinham tido lugar alguns ataques livres ao capitalismo como a nacionalização dos bancos emissores a 12 de outubro e a fixação de normas de intervenção do Estado nas empresas privadas em dificuldades (da Lei de 660/74 de 25 de novembro/74).
No mês seguinte, a 15 de abril, surge o Decreto 203/75, que aprovava a reforma agrária (nacionalização das propriedades agrícolas com área superior a 50 hectares, em regadio, ou 500 hectares, em sequeiro). Também o arrendamento rural era contemplado: os contratos seriam obrigatoriamente escritos e teriam a duração mínima de 6 anos, dando assim aos arrendatários maior garantia de continuidade. O referido decreto dava uma espécie de cobertura legal às ocupações de grandes propriedades agrícolas, que já haviam começado, embora de forma limitada.
Logo a 16 de abril vão suceder-se as nacionalizações das empresas produtoras de energia (combustíveis e hidroelétricas) e de transportes - TAP, CP e transportes marítimos, a 19 de maio os cimentos e as celuloses, a 13 de maio as empresas de tabacos e a 5 de junho mais empresas de transporte de passageiros.
Para celebrar o repúdio ao "golpe spinolista" e esta "vitória da revolução" realizar-se-ão comícios de regozijo e de apoio ao Conselho de Revolução em muitas localidades do país. Em Lisboa veem-se na rua bandeiras do PCP e do PS. Um grupo de manifestantes do PPD/PSD tenta juntar-se-lhes, mas é impedido. A desunião da população era evidente: o "verão Quente" e o 25 de novembro já se adivinhavam.
O poder conquistado ao regime de Marcello Caetano por um grupo de jovens oficiais - a maioria deles capitães (que tinham formado o Movimento das Forças Armadas ou MFA) - havia sido por eles entregue a uma Junta de Salvação, composta por sete militares, todos eles generais, ou almirantes, homens de idade respeitável, probidade e coragem reconhecidas.
Com voz grave e pausada, o general António de Spínola, na sua qualidade de presidente da Junta, leu o Programa do MFA, que previa, no fundamental, a convocação, no prazo de 12 meses, de uma Assembleia Constituinte eleita por sufrágio universal (direto e secreto), a garantia de liberdade de expressão, associação e reunião, o lançamento das bases de novas políticas económica (ao serviço dos mais desfavorecidos e antimonopolistas), social (defesa dos trabalhadores) e ultramarina (neste campo uma política que conduzisse à paz).
Logo nas semanas seguintes iniciam-se numerosas greves, muitas de carácter económico, outras em que se pedia o saneamento de parte ou de toda a administração de algumas empresas. Os "saneamentos" estendem-se também às escolas e a outros órgãos da administração pública. Entretanto, surgem "saneamentos selvagens", isto é, os que não se limitavam a corrigir prepotências evidentes, mas puniam dirigentes que, por qualquer ato legítimo e necessário, se haviam tornado impopulares. Estas greves e saneamentos eram por vezes reforçados impedindo os gestores de entrar ou sair da empresa.
A ocupação de casas desabitadas constituiu também um tipo de ação que despertaria reações contraditórias. As ocupações iniciaram-se logo no dia 5 de maio de 1974, no Bairro da Boavista, em Lisboa, tendo sido ocupados vinte e três blocos vazios. O direito à habitação é facilmente entendível e desperta o apoio do comum dos cidadãos: a existência de casas fechadas tanto tempo em posse da Câmara quando havia pessoas a morar em "barracas" era entendido como um contrassenso. Todavia, entrar numa casa que não é sua, sem licença, está associado a roubo. Esta sensação agravou-se ainda mais quando as ocupações de casas desabitadas se estenderam a muitas outras zonas. Em Portugal havia um número razoável de proprietários de prédios urbanos, estando muitos desses prédios vazios. A somar a isto, existiam também prédios desabitados que eram pertença de emigrantes, pelo que a simples possibilidade de ocupação desses imóveis despertava reações muito negativas.
A par das ocupações, casos houve em que os arrendatários entenderam que a renda que estavam a pagar era exagerada, tendo decidido, geralmente em concordância com os outros arrendatários do prédio ou do bairro, passar a pagar um quantitativo inferior.
A liberdade recém-conquistada proporcionou a possibilidade de uma discussão franca e aberta dos problemas. No entanto, esta discussão raramente ocorreu, sendo mais frequente o estilo propagandístico. A extinção da Censura não serviu apenas para possibilitar a abordagem livre de temas económicos ou sociais: os cinemas do país, por exemplo, começaram a exibir filmes pornográficos em quantidades industriais.
Por outro lado, a situação em África também exigia decisões rápidas, pois as tropas haviam perdido a vontade de combater, isto quando não apoiavam mesmo, nem que fosse por palavras, os antigos inimigos. Diante deste cenário, o general António de Spínola, que como presidente da Junta de Salvação Nacional tinha sido escolhido para Presidente da República, entendeu que faltava a Portugal um poder com efetiva autoridade, e que tal autoridade - de acordo, aliás, com o constante no programa do Movimento das Forças Armadas - teria que ser legitimada através do voto popular. Até então todas as autoridades derivavam do golpe militar. A solução defendida por Spínola e pelos seus apoiantes, entre eles o primeiro-ministro, o professor Palma Carlos, era a de que se devia proceder, desde já, à eleição por voto popular direto do Presidente da República. Contudo, a cumprir-se à letra o previsto, esta eleição só poderia ter lugar após a aprovação de uma Constituição por uma Assembleia Constituinte - e esta nem sequer tinha sido eleita. Seria um processo demasiado lento. Dado o prestígio de que gozava, a realizarem-se estas eleições, Spínola seria quase certamente eleito. Entretanto, irão surgir conflitos entre este e os elementos mais jovens do MFA, que contestavam as ideias de Spínola e, no fundo, não confiavam nele para conduzir o processo democrático em Portugal (Spínola era por eles considerado estruturalmente autoritário, tendo-se vestido com as cores da democracia por motivos conjunturais e para ser considerado "um salvador da Pátria"), nem para conduzir a descolonização.
Quanto à política ultramarina, a ideia de Spínola exposta no seu livro (publicado pouco antes da Revolução de abril e intitulado "Portugal e o Futuro") era a de Portugal e as suas possessões africanas passarem a constituir uma "comunidade de Estados"; no entanto, essa ideia esbarrava na nula vontade de combater das tropas, que já tinham percebido que as colónias iriam ser entregues, pelo que não se justificavam esforços adicionais. Não deixa, aliás, de ser interessante notar que é o próprio MFA, isto é, os oficiais, que havia decidido fazer a revolução e que o tinha escolhido como chefe da mesma, o seu principal contestatário. As reuniões de oficiais do MFA, realizadas nas várias províncias ultramarinas, fizeram autênticos ultimatos no sentido de se iniciar imediatamente a paz.
No plano internacional, as grandes potências, como os Estados Unidos, França, União Soviética e Inglaterra, tentavam alargar por todos os meios as suas áreas de influência, para o que fomentavam e apoiavam vários movimentos oposicionistas nos países ou regiões que pretendiam dominar. Em todo este processo, Portugal aparecia como um entrave a tais apetites.
Spínola não consegue fazer aprovar a sua ideia quanto à política ultramarina e vê rejeitada a sua pretensão de, através de eleições antecipadas, poder dotar o país de alguma legitimidade democrática. A rejeição desta última provoca os primeiros solavancos na revolução: a queda do primeiro-ministro, o professor Adelino da Palma Carlos, a 9 de julho. É então criado o COPCON (Comando Operacional do Continente) para defender o processo revolucionário; todavia, este iria funcionar como órgão paralelo relativamente às estruturas militares clássicas.
Depois da tomada de posse do novo primeiro-ministro, o coronel Vasco Gonçalves, Spínola vai fazer um apelo à "maioria silenciosa" do país, para que faça ouvir a sua voz e evite a anarquia que se antecipava. Apesar das suas reservas, sobretudo no caso de Angola, Spínola já tinha aceite a hipótese da independência das "Províncias Ultramarinas" através da Lei de 7/74.
A "maioria silenciosa" - um grupo que nunca se identificou - respondendo, pelo menos nominalmente, ao apelo de Spínola, pretendeu realizar, em Lisboa, uma manifestação em seu apoio a 28 de setembro de 1974. As forças de contrapropaganda rapidamente invocaram ser uma manifestação de carácter contrarrevolucionário e o Governo proibiu-a. Dando corpo a essa proibição, grupos de soldados e populares ergueram barreiras nas estradas à volta da capital e revistaram os automóveis, procurando armas. Esta "mistura" de soldados e civis era, do ponto de vista militar, muito grave, pois estes deixavam de estar debaixo da vigilância dos seus superiores hierárquicos, podendo atuar em função do que ia sendo discutido e acordado. Acrescia ainda a agravante de se aliarem a indivíduos estranhos à instituição militar. Spínola tenta proclamar o estado de sítio, o que não consegue, e assim, no dia 30, demite-se.
Os generais Galvão de Melo, Silvério Marques e Diogo Neto serão afastados da Junta de Salvação Nacional, e o cargo de Presidente da República será desempenhado por Costa Gomes.
Até aí, no fundamental "o povo estava unido", estava com o MFA conforme se ouvia nas ruas: "o povo unido jamais será vencido", "o povo está com o MFA", entre outros slogans da época. No 28 de setembro, "o povo" tinha-se mostrado desunido, mas estas feridas são esquecidas enquanto as Forças Armadas se dedicam a "campanhas de dinamização cultural" para explicar à população das províncias o que havia sido a revolução.
No início de 1975 irá ter lugar outra "batalha", que marca, sobretudo, a desunião das forças de esquerda (PS e PCP). Em resumo, discutia-se se para cada atividade económica deveria haver um único sindicato - unicidade sindical - ou se para a mesma atividade poderia existir mais de um sindicato. O Partido Comunista defendia a primeira solução, no que é apoiado pelo Ministro do Trabalho, à altura o major Costa Martins. Para o Partido Socialista, esta "unicidade sindical" apontava de futuro para uma "unicidade partidária", para o partido único, ou seja, um regime idêntico ao da União Soviética e demais países do Leste: a Intersindical, união geral de todos os sindicatos, muito próxima do Partido Comunista, e com o apoio deste, promove uma gigantesca manifestação em defesa da sua posição, acusando o pluralismo sindical de ser uma forma de divisionismo. O Partido Socialista riposta logo de seguida num comício no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. Em número de manifestantes a vantagem pende nitidamente para o lado do partidários da unicidade sindical, mas o estilo aguerrido dos socialistas (Salgado Zenha e Mário Soares) aponta para uma cisão entre o "povo" já muito profunda.
O mês de janeiro será o início, embora tímido, da ocupação de grandes propriedades no Alentejo, algumas delas pertencentes a proprietários absentistas. As noções de latifúndio e proprietário absentista eram incompreensíveis para a maioria dos agricultores portugueses do Ribatejo para norte, que com dificuldade extraíam o seu sustento de pequenas courelas. A "reforma agrária", como será chamada, irá assim ajudar a cavar um fosso entre o Norte e o Sul de Portugal.
A 22 de janeiro grupos esquerdistas atacaram fisicamente o I Congresso do Centro Democrático Social que se realizava no Porto. Nas situações de alteração da ordem, como greves, sequestros, ocupações ou barricadas, recorria-se quase sempre ao Exército e não à Polícia. Mas estes também pertenciam ao povo; por isso, o seu comportamento não era o de atuar contra os manifestantes, mas sim o de procurar discutir com eles, saber quem tinha razão e acalmar as várias partes. De facto, tal como atestado pelos slogans da altura: "Os soldados são filhos do povo" e "soldados sempre, sempre ao lado do povo".
O número de militares que seguiam as teses políticas do Partido Comunista aumentava. Este partido parecia-lhes o único com uma estratégia definida, disciplina, mística, características que se aproximavam das da organização militar. Assim, será frequente assistir-se a casos de militares que declaram, a certa altura, terem feito a sua "opção de classe", o que significava dizer: "Eu era e comportava-me como um fascista, um explorador do povo, mas agora escolhi ser socialista, estar ao lado do povo".
A opção pelo Partido Comunista não era a única: o general Otelo Saraiva de Carvalho defendia o "poder popular" e uma nova forma de organização social em diferentes patamares e a partir das bases, isto é, dos bairros, das empresas, ou seja, um "corporativismo das esquerdas". Melo Antunes, ideólogo da Revolução, e figura respeitada, defende um "socialismo" (não uma social-democracia) em liberdade. Nesta altura, há assim um grupo numeroso de militares que ficam como que inebriados com a ideia de que estão a construir uma nova sociedade.
Em março, dar-se-ia o grande embate. Surge o boato de que se preparava para a Páscoa a prisão e o assassinato de variadas personalidades. Não se sabe como surgiu esse boato, mas seja para prevenir essa "matança da Páscoa", seja porque pouco antes (a 21 de fevereiro) havia sido aprovado no Conselho de Ministros um plano económico que defendia o controlo, por parte do Estado, dos setores estratégicos da economia - como a banca, os seguros, a energia, os transportes e os cimentos - através de nacionalizações ou da criação de sociedades anónimas, o certo é que as forças afetas ao general António de Spínola decidem passar ao ataque. No dia 11 de março de 1975, na Pontinha (Lisboa), tropas paraquedistas cercam o RAL1 (Regimento de Artilharia Ligeira 1), regimento considerado um dos focos máximos da revolta entre militares e onde, de acordo com os atacantes, estariam revolucionários de vários países. Os militares desse regimento, chefiados pelo capitão Diniz de Almeida, defendem-no. O povo, ou parte dele, assistiu à cena. Num interessante diálogo entre o chefe dos atacantes e os defensores do RAL1, transmitido também pela televisão, revela-se a candura desses tempos, e um certo companheirismo que, para além das diferenças ideológicas, unia ainda a generalidade dos militares. Ambos evocam ordens perfeitamente legítimas para atuar: uns para atacar, outros para defender. A legitimidade das ordens contraditórias explica-se pela existência de vários centros de decisão: Estados-Maiores das diferentes Armas, Comandos das Regiões Militares, COPCON. Os paraquedistas acabam por retirar: o golpe tinha falhado e Spínola, disfarçado, foge de helicóptero para Espanha. Vários oficiais são presos.
O contragolpe surge com a velocidade de um raio: numa assembleia tempestuosa do MFA, realizada logo na noite de 11 para 12 de março, vota-se o fim da Junta de Salvação Nacional (que é substituída por um Conselho da Revolução, dotado de grandes poderes); a inclusão, na Assembleia do MFA, de representantes dos sargentos e dos soldados; a realização de uma reforma agrária e a nacionalização das grandes empresas. O Presidente da República, Costa Gomes, irá lembrar o compromisso da realização das eleições para uma Assembleia Constituinte.
O Conselho da Revolução, agora institucionalizado, passa a recomendar ao Governo a demissão das administrações de várias empresas (como, por exemplo, da Sociedade Central de Cervejas e do Banco de Portugal).
As medidas aí aprovadas são passadas de imediato à prática: logo a 14 de março são publicados os decretos originados no Conselho da Revolução e que nacionalizam as bancas e os seguros. Até aí já tinham tido lugar alguns ataques livres ao capitalismo como a nacionalização dos bancos emissores a 12 de outubro e a fixação de normas de intervenção do Estado nas empresas privadas em dificuldades (da Lei de 660/74 de 25 de novembro/74).
No mês seguinte, a 15 de abril, surge o Decreto 203/75, que aprovava a reforma agrária (nacionalização das propriedades agrícolas com área superior a 50 hectares, em regadio, ou 500 hectares, em sequeiro). Também o arrendamento rural era contemplado: os contratos seriam obrigatoriamente escritos e teriam a duração mínima de 6 anos, dando assim aos arrendatários maior garantia de continuidade. O referido decreto dava uma espécie de cobertura legal às ocupações de grandes propriedades agrícolas, que já haviam começado, embora de forma limitada.
Logo a 16 de abril vão suceder-se as nacionalizações das empresas produtoras de energia (combustíveis e hidroelétricas) e de transportes - TAP, CP e transportes marítimos, a 19 de maio os cimentos e as celuloses, a 13 de maio as empresas de tabacos e a 5 de junho mais empresas de transporte de passageiros.
Para celebrar o repúdio ao "golpe spinolista" e esta "vitória da revolução" realizar-se-ão comícios de regozijo e de apoio ao Conselho de Revolução em muitas localidades do país. Em Lisboa veem-se na rua bandeiras do PCP e do PS. Um grupo de manifestantes do PPD/PSD tenta juntar-se-lhes, mas é impedido. A desunião da população era evidente: o "verão Quente" e o 25 de novembro já se adivinhavam.
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Como referenciar
Porto Editora – Lutas políticas: a polaridade em choque no pós 25 de abril na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-09-27 00:38:25]. Disponível em
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Porto Editora – Lutas políticas: a polaridade em choque no pós 25 de abril na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-09-27 00:38:25]. Disponível em