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A Morgadinha dos Canaviais - Capítulo XXXIII
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Na manhã do dia seguinte estava toda a família de Madalena, na qual incluímos já D. Doroteia e Henrique, reunida em uma das salas do Mosteiro.As duas primas, Madalena e Cristina, trabalhavam em costura; Ângelo e Henrique jogavam o xadrez; D. Doroteia e D. Vitória conversavam a respeito do preço de umas meadas de linho, que esta tinha dado a corar, e da péssima qualidade do fiado, efeito evidente, segundo D. Vitória, das criadas que tinha, que nem para fiar serviam. O conselheiro examinava distraído vários memoriais e cartas de empenho, que recebera já a pedir empregos e graças em paga dos serviços eleitorais, às vezes hipotéticos.A cada passo, porém, Madalena suspendia o trabalho, para olhar para a porta da sala, principalmente quando nos imediatos aposentos se escutava algum rumor; ou trocava olhares com Ângelo, que não com menor frequência os desviava das pedras do tabuleiro para encontrar os da irmã.Henrique também, de quando em quando, tinha que perguntar a Cristina, e esta, para lhe responder, julgava-se obrigada também a afastar os olhos da costura.D. Vitória e D. Doroteia não era raro meterem-se na conversa dos outros, donde fácil transição achavam logo para voltarem aos seus assuntos favoritos: meadas e criados.O conselheiro interrompia a cada momento a leitura com bocejos, ou fazia notar alguma mais exorbitante pretensão de tantas que examinava.Era evidente que todas aquelas cabeças estavam pouco preocupadas com os assuntos aparentes das suas cogitações.— Ó Lena! — dizia Cristina, que pela terceira vez chamava a prima, sem conseguir ser ouvida — que tens tu esta manhã? Que distracções são essas, que não respondes quando te chamam?— Pois falaste-me?— É o que eu digo! Ó menina, há que séculos te estou eu a perguntar em que tempo é que as laranjeiras têm flor?— Ah! Criste! — acudiu o conselheiro, do lado, sorrindo. — Esse pensamento é linguareiro; ficamos todos sabendo aquilo em que tens estado a cismar.Cristina corou intensamente, ao perceber o sentido das palavras do conselheiro, e tentou defender-se, dizendo:– Ora, não era isso, tio. Eu perguntava, porque…– Sossega; quando o véu estiver pronto, a laranjeira não nos faltará com ramos e flores.– Não, mano — disse D. Vitória — olhe que se não trata de ver o que é que está dando nas laranjeiras, dentro em pouco não há uma só na quinta. Que também para serem comidas as laranjas pelos criados… Porque quase que são só para eles. Não que não faz ideia!…E continuou com D. Doroteia a narração dos abusos de que os criados eram culpados.Daí a momentos foi o conselheiro o primeiro a falar.– Esta é galante! — disse ele, examinando uns papéis e rindo. — Ora ouça isto, Henrique. Aqui está um homem que deseja que eu empregue nada menos do que sete sobrinhos que tem. Sete! É uma geração como a de Jacob; se estivéssemos na corte de Faraó!…— Se se satisfizessem cada um com uma pasta?… Era um ministério completo — disse Henrique.– Oh! oh! — dizia o conselheiro, passados alguns momentos. — Cá está o meu amigo Pertunhas, teimando com o lugar de recebedor.– Pois o maroto inda se atreve?…– E que despesa de estilo que faz! É uma ode congratulatória em prosa.Nestas entremeadas conversas e diálogos curtos e interrompidos passou-se o tempo até à chegada do correio, sucesso que marca época numa manhã passada na aldeia.Naquele dia, sobretudo, eram esperadas com ânsia as cartas e os periódicos, que deviam trazer notícias do resultado das eleições dos diferentes círculos do país.O conselheiro já por três vezes consultara o relógio, estranhando que o correio se demorasse.Enfim chegou.O conselheiro pôs de lado os memoriais e requerimentos; Henrique deu súbito desfecho ao jogo com um lanço absurdo, e ambos se precipitaram sobre os periódicos e cartas; Ângelo veio encostar-se ao espaldar da cadeira de Henrique.O conselheiro principiou por ler uma carta.Henrique rompeu a cinta do primeiro periódico.— Oh! oh! — disse o conselheiro, logo às primeiras linhas que leu. — Temos crise ministerial. As eleições foram pouco favoráveis ao Governo; perderam-nas em quase toda a parte!— Assim também se depreende do estilo em que vem escrito este artigo de fundo — disse Henrique.— Dizem-me nesta carta que já se fala em que o ministério vai pedir a sua demissão.— Este artigo alude apenas a uma reconstituição do gabinete.— «O Governo — prosseguiu o conselheiro, lendo — nem espera pela constituição da câmara e cai por estes dias, infalivelmente. Quando você receber esta, já talvez ele pertença aos livros findos».— «Diz-se que há para esta noite conselho de ministros para resolver sobre qual o seu procedimento, visto a índole provável da futura câmara» — lia Henrique no periódico, que logo em seguida pôs de lado, para consultar outro.— «Não imagina — continuava o conselheiro, lendo a carta — o movimento de ambições que vai já por aqui». Ora se não imagino!— Um número do Sufrágio Nacional! — exclamou Henrique, abrindo segundo periódico. — Provavelmente, é alguma amabilidade que lhe dirigem, Sr. Conselheiro; eles que lho mandam!— Sim, decerto. Como da outra vez. Veja lá — disse o conselheiro sorrindo —; aos moribundos tudo se perdoa.Henrique correu a vista pela folha, para saber o que motivara a remessa dela para o Mosteiro, onde não costumava vir.– Ah! Temos correspondência cá da terra! — exclamou por fim.— Deve ser isso. Já tardava. É comunicado do Seabra. Leia, que são curiosos. O homem a apreciar as eleições de domingo deve ser soberbo. Isso não se pode perder. Leia, leia.— Assina-o um leitor indignado.— Justo. É o estilo do homem. Vamos lá a ver isso.Henrique principiou a ler em voz alta o comunicado do Brasileiro.A peça literária, de precioso lavor, em que o Sr. Seabra contava ao Mundo os factos eleitorais da sua terra, muito desejaria eu transcrevê-la aqui, se, pela sua extensão, não tomasse demasiado espaço, e se, pela sua unidade e estreita ligação lógica, se não subtraísse à menor tentativa de fragmentação.Aquele comunicado era indivisível.Apesar desta forçada omissão, espero que os leitores farão a justiça de supor o escrito digno do distinto economista, que ouvimos discursar com tanta proficiência na taverna do Canada.O homem escrevia recheado de indignação pela série de ilegalidades, escândalos, subornos e pressões de todo o género de que, dizia ele, fora teatro aquela pacífica aldeia do Minho.Em linguagem chã e rude ia tornar patente, acrescentava, aos olhos de todos uma pestífera chaga do organismo social. Sofismara-se a urna e calcara-se aos pés a Carta. As frases em itálico são dele. Depois de um exórdio por esta afinação, em que fazia a conveniente razão de ordem, entrava o homem na matéria. Era um modelo de impertinente bisbilhotice o escrito; desfiava-se ali a vida de todos os eleitores com uma minuciosidade esmagadora.Contava-se como o compadre de Fulano dissera isto e aquilo ao sobrinho de Sicrano; e como tal indivíduo fizera e acontecera; e como tal disse que havia de fazer, e não fez; e como aquele nem disse nem fez; e como aqueloutro dissera e fizera, e assim por diante. Um dos mais maltratados era o Sr. Joãozinho das Perdizes. Dizia o autor da correspondência que o Morgado se tinha vendido por vinho; que exercera pressão sobre os eleitores da sua freguesia; que era homem de péssimos costumes e moral depravada; jogador, bulhento, beberrão, cheio de dívidas, amigo de malfeitores, et cœtera.O conselheiro e Henrique seguiam a leitura com gargalhadas.O comunicado passava depois a ocupar-se com o mestre Pertunhas.O Brasileiro não lhe perdoara a pressa com que este celebrara a vitória do conselheiro, à frente da filarmónica que regia.Por vingança chamava-lhe todos os nomes injuriosos, que a raiva lhe sugeria, inclusive o de estafador de trompa, e fechava por estas memoráveis palavrasPara levar à evidência o carácter infame e intriguista deste sevandija, basta que diga que foi ele quem, poucos dias antes, subtraiu de uma pasta aquela célebre carta política, que tanto deu que falar no país. E este homem exerce o cargo de administrador do correio. Proh pudor!».Como o leitor imagina, esta parte da correspondência produziu sensação no auditório.Logo que Henrique concluiu a leitura, saiu de quase todas as bocas uma exclamação de surpresa ou de alegria.— Como é?… Como é?… — perguntou o conselheiro. — Diz que…?— É o mistério que se explica — respondeu Henrique. — A traição encarrega-se de a si própria se desmascarar.— Então foi o Pertunhas?!… Mas… diz-se que tirou a carta de uma pasta.— Era a de Augusto.— Mas como estava ela aí?— Lá isso sei eu como foi — disse D. Vitória —; fui eu que, por engano, lha tinha dado junta com outras para ele escolher alguma para a leitura dos pequenos.Cristina celebrou a descoberta, beijando com efusão a Morgadinha, e dizia:— Venceste, Lena! Agora está bem provada a inocência dele, até para os que mais duvidavam!— E quem não duvidaria? — acudiu o conselheiro, como para se desculpar da desconfiança.— Quem o conhecesse bem, meu pai — respondeu Madalena, a quem a comoção recebida dava animação ao olhar e ao semblante. — Eu e Ângelo, por exemplo.— E então eu? — acrescentou Cristina. — Eu não entro na conta?Esta reclamação valeu-lhe da parte da prima a paga do beijo que recebera.— Olhem o pobre rapaz! — dizia D. Vitória, sinceramente consternada. — E eu que o tratei tão mal! Bem me dizia ele: «Não tenha pressa de dizer nada a seus filhos, minha senhora; não lhes ensine a duvidar de um homem que eles se costumaram a amar e a respeitar». E o caso é que eu, desde que lhe ouvi dizer aquilo, de um modo tão sério e triste, fiquei ressentida e não disse nada às crianças, que todos os dias me perguntam ainda por ele.— Mas… — dizia D. Doroteia, deveras embaraçada — eu não sei ainda bem do que se trata. Pois suspeitavam de Augusto?… Mas o quê?…— Ó tia Doroteia — atalhou Henrique — por quem é, não insista na pergunta. Depois que se sabe que uma suspeita é falsa, não há nada que mais escalde os lábios do que obrigá-la de novo a passar por eles.— Tens razão, menino. E que precisão tenho eu de saber uma coisa que não é verdadeira? Mas na verdade! Suspeitarem de Augusto! Ah! Henrique, está-me a parecer que também tu tens esse pecado a pesar-te na consciência. Ora anda lá.— Não, tia. Há muito que lhe faço justiça. Ao princípio não digo que não. Mas durou pouco tempo e já estava arrependido. Augusto convenceu-me pela maneira com que me falou, convenceu-me sem provas, e até se, em expiação, me não pus em campo a auxiliá-lo a justificar-se, é porque ele exigiu que me abstivesse disso, e, depois, o meu desastre… quero dizer — emendou, olhando para Cristina — a felicidade que me procurou sob a forma da doençaCristina pagou-lhe com um sorriso o galanteio.O conselheiro, que ficara pensativo depois das primeiras reflexões que lhe ouvimos fazer, disse, suspirando:– Estou sentindo verdadeiros remorsos pelo mal que por certo causei àquele rapaz com as minhas suspeitas. Mas que havia eu de fazer? As aparências eram-lhe contrárias!… E depois, nesta vida de política, aprende-se tanto e tão depressa a duvidar!… É sorte minha! Homens, a quem eu estimava deveras, foram exactamente os que mais fiz padecer! Senão, vejam: o ervanário, meu companheiro de infância, e que sempre me teve amizade, apesar das aparências rudes de que a revestia, dispuseram-se as coisas de modo que o privei da casa em que nasceu e talvez lhe apressasse com isso a morte… E ele, coitado, vingou-se nobremente; mas vingou-se, porque nunca mais me sairá da ideia aquela cena da igreja. Augusto, um rapaz que conheci pequeno, e já então de viva inteligência e de sentimentos nobres…, pois tudo se conspirou para o perder, e não só o privei do modesto lugar que ele exercia, mas até levantei contra ele uma acusação infamante e quase o expulsei de minha casa… É triste que a vida política me tenha obrigado a estas crueldades! Preciso de compensar de alguma sorte o mal que fiz. De que maneira lhes parece melhor?– Eu, se fosse — disse D. Doroteia — fazia como a morgada, e o rapaz, em vez de vir a ser só padre, havia de se formar em Coimbra, como o reitor de Friande…– Isso era se ele quisesse ser padre — acudiu D. Vitória —; mas parece-me que não quer. Nada, nada, eu o que fazia era demitir aquele velhaco do Pertunhas, e dava a este o lugar de mestre de latim, e arranjava que ficasse também com o correio. Ora anda, já que o outro foi tratante!…O conselheiro sorriu ao expediente da cunhada, e não pôde deixar de dizer:– Nesse caso deixava só ao Pertunhas a regência da filarmónica? E tu, Lena, qual é a tua opinião?Madalena respondeu sem vacilar:— A minha opinião é que o pai deve ir a casa de Augusto, pedir-lhe humildemente perdão pela ofensa que lhe fez.— Mas involuntária — ponderou o conselheiro, em tom de despeito, que não pôde bem disfarçar.— Mas ofensa — repetiu Madalena sem que o sorriso dissipasse totalmente a força da expressão.— É um pouco dura de cumprir a sentença, sobretudo esse advérbio «humildemente»… Não lhe parece? — perguntou o conselheiro, voltando-se para Henrique.— Eu tinha vontade de dizer também a minha opinião — respondeu Henrique —; mas receio certos melindres… Contudo, parece-me que encontraria uma recompensa, que poderia fazer esquecer a Augusto ofensas e dores muito mais pungentes do que as que sofreu em virtude desta desagradável ocorrência.— Qual é? — perguntou o conselheiro.Henrique olhou para Madalena, respondendo:— Repito que tenho escrúpulo em dizê-lo, porque talvez não seja eu o mais competente para o fazer.— Tem razão, primo — disse Madalena. — Ele próprio o dirá. É mais natural.— Mas sabe-lo também tu, Lena?— Sei.— Então dize-no-lo. Melhor para mim, se puder prevenir desejos.Madalena hesitou.— Vamos, Henrique — disse Cristina, sorrindo — não esteja com tantos escrúpulos. Diga o que pensa.— Pois quer? Mas se sua prima me não perdoa?— Eu o protegerei. Fale.— Então, Criste? — tornou Madalena.— Bem; nesse caso… Visto que mo ordena quem pode.— Fale, fale — disseram a um tempo o conselheiro, D. Vitória e D. Doroteia.— Falarei. A recompensa a que Augusto aspira é a de fazer parte da família de… da nossa família — respondeu Henrique, olhando para Madalena, que já não tentava retê-lo.— De fazer parte da nossa família? — repetiu o conselheiro. — Mas como?— Como há-de ser? Visto eu não estar resolvido a prescindir de Cristina, e Mariana ser ainda criança, fácil é de conjecturar o único meio que ainda resta de realizar aquela pretensão.O conselheiro compreendeu afinal, e, fitando Madalena, pôs-se a rir, dizendo:– Pobre rapaz! Pois meteu-se-lhe isso na cabeça?– Mas que é afinal? Eu não entendo — dizia embaraçada, D. Vitória.– É uma coisa muito simples — respondeu Henrique. — Augusto sentiu o efeito dos encantos da minha prima Madalena, mas sentiu-os a ponto de ligar a eles a sua felicidade, e de cair em adoração para com a magnetizadora.Esta explicação foi recebida com espanto por D. Vitória.— Ora! Está a brincar, primo Henrique! Não ouve aquilo, prima Doroteia?— Mas que é, que é? — perguntou esta.— Diz que o Augusto aspirava…— Perdão, eu disse que Augusto adorava e não aspirava. Quem pode tomar contas a um coração do culto que ele guarda religiosamente em si? A prima Lena é adorada por aquele rapaz, isso afirmo eu, porém…– É possível! — exclamou também D. Doroteia, espantada. — Por essa não esperava eu. Olhem para o que lhe havia de dar! Pobre Augusto!O conselheiro ria ainda da notícia que recebera.Madalena corou ao ouvir todas aquelas exclamações de estranheza. Cedendo ao impulso enérgico do seu carácter impetuoso e apaixonado, disse com vivacidade:— Não sei que haja no que diz o primo Henrique nada que mereça esses espantos. Pois quem sou eu afinal? Que distância me separa da humanidade, para que se tenha por um desacato uma afeição que inspire? É verdade. Julgo que não se enganou o primo Henrique. Também eu descobri esse afecto em Augusto. Nasceu-lhe no coração e não na cabeça, meu pai. Há muito que o sei e nunca a descoberta me causou o espanto que vejo nos outros. Digo mais: causou-me orgulho. Orgulho, sim, porque é natural senti-lo por ter inspirado sentimentos daquela ordem a um carácter generoso que, experimentado pelo infortúnio, saiu sempre da prova mais nobre e mais puro do que dantes.O conselheiro, que ouvira a filha com impaciência, acudiu, em tom profundamente irritado:— Bem, bem; deixemo-nos de loucuras e de poesia, Lena. Vê lá se me queres fazer acreditar que a vida da aldeia te estragou o natural bom-senso, até o ponto de tomares a sério fantasias e criancices.– Não é fantasia nem criancice; é uma resolução de mulher — respondeu Madalena, com firmeza.– Uma resolução de criança, que está na minha mão remediar — tornou o conselheiro, como quem desejava cortar o incidente.Porém, para o génio de Madalena já não era possível recuar nem parar; replicou:— Talvez não. E deixe-me então dizer-lhe tudo, meu pai. Augusto nunca me revelou esse segredo do seu coração. Adivinhei-lho eu. Longe de procurar ser entendido, ocultava-se e fugia; ainda ontem estava resolvido a deixar a aldeia para sempre.— Mas ficou — notou o conselheiro com ironia.— Ficou — respondeu tranquilamente Madalena — porque eu lhe pedi que ficasse.O conselheiro, ouvindo estas palavras, estremeceu de surpresa e fitou a filha com olhar severo e interrogador.A Morgadinha prosseguiu com uma serenidade que ocultava um esforço interior.— Ficou, porque eu lhe disse que o havia compreendido e que aceitava a afeição desinteressada e pura que ele guardava no coração; ficou, porque eu, que só tarde soube do desespero que o obrigava a partir, e que o sabia tão leal como pobre, tão inocente como perseguido pelo infortúnio, eu, que o vi quase expulsar desta casa, sob o peso de uma acusação em cuja verdade nunca pude acreditar, julguei do meu dever ir eu própria procurá-lo para lhe estender a mão e dizer-lhe: «fique, e prometo-lhe que todos lhe farão justiça em breve».Quando Madalena acabou de dizer estas palavras com firmeza e exaltação crescentes, ninguém ousou falar na sala; e os olhos de todos dirigiram-se instintivamente para o conselheiro.Cristina tremia; as outras senhoras pasmavam; Henrique e Ângelo sentiram-se profundamente inquietos.Todos viram passar por diferentes cores as faces do conselheiro, os lábios agitaram-se-lhe num tremor convulso, e, com a voz evidentemente alterada pela cólera, disse para a filha, passados alguns instantes:– Pois saiba, senhora, que para as leviandades de uma rapariga estouvada, há meios mais racionais do que esses que parecem naturalíssimos à sua razão estragada pelos romances. Eu ainda não prescindi da minha autoridade paterna, e ela me servirá para corrigir essas levezas, de que deveria envergonhar-se.Esta cena de família aumentava cada vez mais a dificuldade da posição de todos os que estavam presentes. Ninguém ousava intervir, ou, desejando-o, ninguém sabia a maneira de o fazer.Entre as falsas situações, em que nos achamos às vezes nesta vida, poucas se podem comparar, no incómodo que produzem, à de assistir a uma questão doméstica, por qualquer motivo que seja originada.Quem se conservou daquela vez menos inactiva foi Cristina, que prendeu Lena nos braços, não sei se para instintivamente a defender, se para reprimir-lhe o ímpeto de reacção que receava nela.A Morgadinha efectivamente repeliu-a com brandura de si e respondeu ao pai:— Às vezes aos caracteres levianos estão confiadas tarefas generosas. Cabe-lhes sanar muitas injustiças que, por cálculo, os mais reflectidos, e por isso mais desconfiados, praticam sem piedade. Não me envergonho nem arrependo do passo que dei. Não fiz mais do que salvar do desespero uma alma nobre e magnânima, que, se se perdesse, talvez um dia a sua consciência, senhor, o acusasse de não ser inocente nessa perda. Quis evitar-lhe remorsos, meu pai. Se isto foi leviandade, que os anos ma não dissipem, como dizem que costumam fazer, porque prefiro ser leviana assim, a ser cruel comoO pai atalhou-a, e cada vez com mais veemência replicou:— Pois siga, se quiser, a sua fantasia, senhora, mas terá de escolher entre os seus caprichos e a minha aprovação. Fique certa que, com o consentimento meu, nunca um rapaz pobre, sem família e sem posição, especulará com o estouvamento de uma herdeira rica, que, tão esquecida do que deve a si e aos seus, não hesitou em o procurar na própria casa, sem reparar que estava sendo vítima de uma comédia armada à sua crédula sensibilidade.Antes do conselheiro concluir estas palavras estava alguém mais na sala.Era Augusto.Da sala próxima, onde chegara muito antes, ouvira ele o que o conselheiro dizia em tom elevado, e o sentido das palavras que ouviu venceu-lhe toda a hesitação e obrigou-o a entrar.O conselheiro, reparando de súbito nele, interrompeu-se e parou.Augusto respondeu-lhe então com dignidade e tristeza:– Esse rapaz pobre, sem profissão e sem família, tem nesse tríplice infortúnio outros tantos títulos para ser respeitado dos felizes, como V. Ex.a, e eu não prescindo desses direitos.O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse responder a Augusto. A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.Augusto continuou:– Sei que V. Ex.a está já convencido de que as suspeitas que pesavam sobre mim eram injustas. Nesse periódico, que ainda tem na mão, vêm as provas da minha inocência. Vi-o em casa do Seabra, donde venho agora. Procurei-o, decidido a saber toda a verdade por qualquer preço que fosse; ele não ma negou; contou-me tudo. Por isso, ao vir aqui, Sr. Conselheiro, ao voltar a esta casa, onde era recebido como amigo antes que me expulsassem dela como infame, esperava encontrar a receber-me a justiça e a amizade… Enganei-me; em vez delas, foi o insulto, mais pungente e menos justificado do que o primeiro, que eu encontrei!– Menos justificado? — repetiu o conselheiro, azedamente.— Menos justificado, sim, muito menos; porque V. Ex.a podia julgar-me criminoso; pode julgar-se com direito de duvidar de mim, mas não tem o de duvidar de sua filha; porque a Sr.a D. Madalena, pedindo a seu irmão que a acompanhasse a casa de um pobre, que ela sabia ser vítima de uma imerecida acusação, e a quem o desalento e o desespero faziam sucumbir, não se esqueceu do que devia a si e aos seus; pelo contrário, aos seus devia aquele acto de sublime generosidade, porque das mãos dos seus viera o golpe que me ferira. Eu tinha sido expulso desta casa, Sr. Conselheiro, como um miserável e infame; os filhos de V. Ex.a, que sempre foram meus amigos, a quem V. Ex.a ensinara a sê-lo, vieram à minha dizer-me: «Não parta, deve à nossa confiança a justiça de ficar».— É verdade — disse Ângelo — eu acompanhei Madalena. O pai diz-me muitas vezes que não tenha pressa de principiar a duvidar; eu não podia principiar por Augusto. Não duvidei.O conselheiro respondeu a Augusto com reserva e mal disfarçado despeito, ainda que em tom moderado:— Sei que fui injusto consigo, Augusto, e sinto-o do coração, creia. Ainda que as aparências o culpassem, arrependo-me de não ter tido mais força a minha confiança para não ceder. — Peço-lhe por isso… humildemente… perdão. Iria a sua casa pedir-lho se não viesse aqui. Que mais quer? Acha-se com direitos a exigir mais? Será isso motivo para antever realizadas loucuras de rapaz?…Augusto não o deixou continuar.— Ouça-me, Sr. Conselheiro — disse ele placidamente — diante de todas as pessoas que me escutam, lealmente e sem hesitar, patentearei o meu coração. É verdade que essas loucuras se apoderaram de mim, que, desde criança até hoje, tenho sido todo delas; mas que importam aos outros, se eu comigo as guardava? Se nunca por elas regulei os actos da minha vida? Ocorrências imprevistas me arrancaram este segredo, que eu fiz sempre por sufocar. Nem ambições me despertou, como meio de realizá-lo, porque nem em realizá-lo pensava. Resignar-me-ia a morrer com ele, sem o revelar a ninguém; mas, adivinhado por quem o fizera nascer, e, deixe-se-me o orgulho de o dizer, adivinhado e correspondido, que muito era que me tomasse a vertigem, e que eu por momentos me deixasse cegar pelo fulgor de imprevistas esperanças? Perdoe-se-me a franqueza. As ilusões duraram pouco; as palavras de V. Ex.a dissiparam-nas… um tanto cruelmente, mas em todo o caso acordei. Creia, Sr. Conselheiro, que o ser pobre, sem família e sem nome impõe também uma certa ordem de deveres, a que eu serei fiel. Não é o de humilhar-me; é o de manter a única dignidade que me resta, a dignidade moral. Já vê V. Ex.a que se enganou de duas maneiras: nem da parte do rapaz pobre houve especulação, nem da parte da herdeira rica estouvamento.E, acabando de dizer estas palavras, Augusto inclinou-se respeitosamente diante do conselheiro, e ia a sair, depois de lançar a Madalena um extremo olhar de despedida.A Morgadinha, porém, ergueu-se, e, apesar dos esforços de Cristina para a reter, veio colocar-se no caminho de Augusto, e, estendendo-lhe a mão, disse:— Não saia, Augusto. Em nome de meu pai lhe peço que não saia.— Madalena! — disse o conselheiro com severidade.— Sim, em seu nome, senhor, porque quero livrar-lhe o futuro de remorsos; sim, em seu nome, porque hei-de fazer-lhe ouvir a voz do coração, que tantas vezes desatende, arrependendo-se amargamente depois.— Madalena! — repetiu o conselheiro com mais força.— Minha senhora! — disse Augusto.Porém a Morgadinha obedecia agora inteiramente à veemência do seu carácter apaixonado.– Sinceramente revelei há pouco os sentimentos do meu coração; todos me ouviram; todos ouviram agora Augusto. Fale, senhor, com a mesma franqueza e lealdade com que nós o fizemos: poderá confessar a natureza dos escrúpulos que o obrigam a essa resistência? Não se envergonharia deles? E quer que lhe obedeça? Mas obedecer-lhe seria ofendê-lo, porque seria acreditar na constância dessa má paixão que o domina e no seu bom coração não pode ela durar muito tempo.O conselheiro, no auge da irritação, ia talvez a responder violentamente. Cristina e Ângelo tinham-se aproximado de Madalena; as outras senhoras principiavam a ensaiar em surdina as primeiras tentativas conciliadoras; Henrique meditava um plano de intervenção, que ele supunha já indispensável, quando um incidente veio interromper esta cena e modificar a feição crítica do caso.O incidente foi a chegada de um criado de farda, pertencente ao serviço de um proprietário da vila próxima. Este criado era portador de uma mensagem para o conselheiro.O velho Torcato tinha adormecido na sala imediata; o lacaio dispensou-se de o acordar, e guiou-se pelo som das vozes para chegar à presença do conselheiro.A chegada do lacaio acalmou a tempestade doméstica, que principiava a carregar-se.O conselheiro, conhecendo-o, interrogou-o sobre o fim daquela visita.O criado respondeu:– Venho para entregar a V. Ex.a esta parte telegráfica, que chegou a meu amo logo depois que tinham partido as malas do correio, de maneira que não pôde mandá-la com elas.O conselheiro, agitado ainda, pegou no papel que o mensageiro lhe deu, e correu-o com a vista.Imediatamente um raio de alegria lhe fuzilou nos olhos.Acabando de ler, disse ao criado, que esperava resposta:– Dize a teu amo que recebi e que pode responder que sim.O criado saiu.Neste meio tempo as senhoras e Cristina rodeavam Madalena e combinavam um projecto de harmonia doméstica; Ângelo e Henrique desempenhavam-se junto de Augusto de quase idêntica tarefa.O conselheiro estendeu a Henrique a parte telegráfica, enquanto que uma visível satisfação se lhe desenhara no semblante.– Leia e admire — disse ele.Henrique leu e não reteve uma exclamação de surpresa.A parte dizia:«Avise o conselheiro Manuel Berardo para quanto antes se apresentar em Lisboa. Estou encarregado de organizar ministério e quero que ele aceite uma das pastas».Assinava-a um dos mais notáveis vultos políticos do país.Henrique, que sabia o valor de certas oportunidades, e a quem a surpresa da notícia não fez esquecer a crise doméstica a que assistira, disse logo que acabou de ler, e dirigindo-se a Madalena:– Prima Madalena, compete-lhe ser a primeira a dar ao novo ministro os emboras pela sua nomeação.A palavra «ministro», produziu sensação na sala.D. Vitória exclamou:— Ministro! Pois quem é que está ministro? O mano?!… Ora, sim senhor! acertou Sua Majestade!…— Mas… valha-me Deus! O ponto está que não façam por aí alguma revolução para o deitar abaixo — acudiu D. Doroteia, em cujo ânimo os factos das nossas dissensões civis tinham deixado sinistras ideias ligadas à palavra ministro.Madalena, Ângelo e Cristina correram a abraçar o conselheiro; Henrique reteve, porém, os dois últimos, dizendo:– Primeiro, Lena. Talvez tenha a pedir alguma mercê a S. Ex.a, e à primeira não há carácter de ministro que não ceda.O conselheiro sorriu já.Madalena beijou-lhe a mão, e o pranto provocado pela violência das cenas anteriores, e até ali a custo reprimido, rebentou agora abundante, banhando as mãos do pai.Henrique afastou-se a conversar com Augusto, para o não deixar sair da sala.O coração do conselheiro não era de pedra. Duas causas poderosíssimas conspiravam-se para abrandá-lo. Como homem político, havia a satisfação da máxima ambição de todos, a notícia de ser chamado ao ministério. — Nos momentos em que vemos satisfazer-se qualquer ardente desejo no nosso coração, abrimo-nos às simpatias para com os desejos dos outros, e, se de nós depende realizá-los, cedemos de boa vontade. Como pai, havia as lágrimas da filha a convencê-lo, e a eloquência deste argumento das lágrimas em olhos de mulher é geralmente sabida; quanto mais se a mulher é jovem e bela! quanto mais se a mulher é filha!Sem o menor vestígio da irritação anterior, o conselheiro ergueu Madalena, apertou-a ao seio e disse-lhe meigamente:– Porque choras tu, Lena? Criança! Então prometes-me ser muito feliz, se eu te deixar fazer as tuas loucuras?Madalena respondeu-lhe, abraçando-o afectuosamente, e beijando-o.Há argumento mais convincente do que este? Conhecem arma mais poderosa contra as severidades de um pai?O conselheiro beijou também paternalmente nas faces a filha, e, voltando-se depois para Augusto, disse-lhe em tom de voz quase afectuoso:– Augusto, vou confiar-lhe a minha felicidade, confiando-lhe a felicidade da minha Lena. Vingue-se da injustiça e do mal que lhe fiz, tornando-ma venturosa. É a única vingança à altura da sua alma.Augusto não teve tempo para responder. Se uns restos de orgulho tentassem lutar ainda com o amor, sufocá-los-iam os esforços combinados de Cristina, de D. Vitória e de D. Doroteia, que o arrastaram quase para junto do conselheiro.E toda aquela família, em que não havia naquele momento um só coração triste, confundiu-se por algum tempo no mais desordenado, pueril e patético grupo, que pode desenhar um artista.Para mais tocante confusão ainda, as crianças, que voltavam dos seus brinquedos na quinta, entraram então na sala, e de boa vontade se associaram àquela manifestação de alegria, sem querer saber o que a motivara.São assim as crianças. Alegres por instinto, saúdam as cenas alegres sempre que as vêem, sentem-nas antes de as explicarem.Foram inumeráveis os beijos, os abraços, as palavras de afecto, os sorrisos, as lágrimas, as exclamações pueris que se trocaram entre os diversos actores desta cena de família.Chegado a este ponto da minha narração, nada melhor posso fazer do que deixar à imaginação dos leitores concluí-la.Haverá algum tão malfadado que na sua vida não tenha visto representada uma cena assim?Esse mesmo, se existe, obriga-me a não prosseguirO quadro, que a reproduzisse, exacerbar-lhe-ia o desconsolo da alma, de que por certo é vítima.Paremos aqui para que nos fique nos ouvidos este jovial rumor de beijos, de risos e de vozes de alegria, porque, a prolongarmos mais a narração, vê-lo-íamos abafado pelos sons revolucionários e anárquicos da filarmónica da terra, que não tardará a festejar a nomeação do conselheiro, e sobretudo pelo estridor da tuba do mestre Pertunhas, tuba verdadeiramente épica, e capaz de mudar a cor ao gesto, como a de que fala o poeta.Fechemos, pois, aqui a história, dando apenas sucinta conta dos acontecimentos ulteriores.
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Como referenciar
Porto Editora – A Morgadinha dos Canaviais - Capítulo XXXIII na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-12-05 15:51:17]. Disponível em
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