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Crises Milenaristas
O milenarismo é uma tradição cristã que assenta na crença do regresso de Cristo à terra, passados mil anos da sua ressurreição. Com a vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos e o julgamento universal dos homens, dá-se início ao Reino de Deus. Esta crença radica numa leitura e interpretação literal do Livro do Apocalipse de S. João (Ap 20, 1-6), e numa visão terrível do fim do Mundo.
O período compreendido entre os finais do século IX e os meados do século XI foi marcado por graves problemas que afetaram profundamente a Cristandade ocidental. Por um lado acabava-se de assistir ao desmembramento do Império Carolíngio, e em todo o Ocidente desaparecia uma força militar sustentada e respeitável. Do Sul sofrem-se os ataques dos muçulmanos, e vindos da Ásia Central, os magiares (húngaros) constituem uma nova ameaça. Os Normandos espalhavam também a destruição, agravando ainda mais a situação, e a Europa acabou por mergulhar no terror e no caos.
O papado já não dispunha da proteção do exército de Carlos Magno, ou dos seus descendentes, que se consideravam defensores da Cristandade, vendo-se inclusivamente mergulhado nas lutas pelo poder com uma nobreza ascendente nos reinos de Itália. Esta nobreza não aspirava apenas ao poder em Itália mas também ao controlo da Igreja, pelo que os papas são muitas vezes apanhados como joguetes nestes jogos de poder. Os conflitos arrastaram consigo um declínio progressivo do papado, sobretudo no que diz respeito aos campos da moralidade e da espiritualidade. Muitos cargos eclesiásticos foram atribuídos por nobres a membros das suas famílias, o que provocou um esvaziamento quase total da dignidade, da competência e da própria missão de cada cargo.
No decorrer do século X, a Europa assistiu ao declínio quase total das suas instituições civis e da sua cultura. As Igrejas eram frequentemente saqueadas por invasores ou mesmo por membros da nobreza, que anexavam bispados e mosteiros como se fossem propriedade sua. O próprio clero entrou em declínio, cada vez mais imoral e inculto, esquecido da sua missão.
Neste cenário o fim do Mundo parecia iminente, com grande parte da população cristã a acreditar que ele chegaria no ano mil.
Na verdade, desde as suas raízes, o cristianismo desenvolveu-se sob o estigma apocalíptico. Quase todos os teólogos, ideólogos e visionários da Igreja (pode-se excluir Santo Agostinho) vislumbravam o fim do Mundo e tentavam calcular a sua data. Os próprios mitos do Anticristo vão enchendo o imaginário, quer dos membros do clero, quer da população crente em geral. Nas vésperas do ano mil, à conjuntura já existente vieram juntar-se novas ameaças, como fomes e epidemias, e tudo se tornou num presságio agoirento de horror e destruição (cometas, eclipses, etc.). Os cristãos sentiam a presença do Diabo e entendiam todos os acontecimentos como o castigo dos seus pecados.
A defesa e a salvação eram vistas na penitência, no apelo para os Santos, na procura de relíquias, e nas peregrinações aos lugares santos. Assim esta foi uma fase de peregrinações coletivas a Jerusalém, a Roma, a Santiago de Compostela (cuja primeira basílica fora consagrada em 899), vistas como viagens santas de preparação para a morte e a promessa da salvação.
Segundo alguns autores, os relatos dos terrores do fim do Mundo durante o ano mil foram exagerados, sobretudo por cronistas eclesiásticos no século XVI. Estas afirmações têm pertinência sobretudo no que toca a textos (muito posteriores ao ano mil) que nos falam de céus que se abrem e da terra que engole tudo. Temos conhecimento de que poderá ter havido, naquela época, um tremor de terra (crónica de Sigberto de Gembloux, escrita no século XII), mas certos relatos são de tal forma exagerados que devemos colocar reservas quanto à sua autenticidade.
De qualquer forma, a conjuntura militar, política, social e cultural desta fase, aliada às fomes (1033) e pestes (997), os maus anos agrícolas, nas vésperas da passagem dos mil anos sobre a ressurreição de Cristo, provocou sem dúvida profundos receios na imensidão de fiéis que compunham a cristandade. Segundo o Livro do Apocalipse, ao fim de mil anos, o Mal invadirá o Mundo, sendo este o fundamento do milenarismo. Para os crentes, não seria difícil ver o Mal em todas as ameaças de povos inimigos, nos horrores da fome e da doença, nos prodígios que vinham dos céus (deu-se a passagem de um cometa em 1014, um eclipse em 1033, e um embate de estrelas em 1023).
Outro importante aspeto, visto como sintoma do fim dos tempos, foi o aparecimento das heresias e dos falsos profetas. Em 1017 surgiu um homem cujas ideias vão dar origem a um grupo de representantes do Anticristo. Alguns cónegos de Orleães tornaram-se maniqueus convictos e acabam por ser queimados como hereges. Na raiz destas disputas estão precisamente divergências quanto à riqueza da Igreja, que se encontrava cada vez mais afastada da sua missão inicial e mais entregue aos prazeres terrenos e materiais.
A destruição do Santo Sepulcro e a tomada de Jerusalém pelos muçulmanos constituíram também um rude golpe para a Igreja e para toda a cristandade. Segundo rezam as crónicas estes acontecimentos foram pressagiados por uma visão da cruz, que seria o derradeiro aviso. A partir desta fase iniciou-se o processo de identificação do Mal com o inimigo infiel, o mouro e o judeu. Estabeleceu-se inclusivamente uma imagem definida dos exércitos do Bem, vestidos de roupagens brancas, e dos exércitos do Mal, cobertos de vestes negras, numa associação clara com os muçulmanos.
Na viragem do ano de 1033, quando se deu o milénio da Paixão (a celebração da Páscoa assumiu uma importância muito superior à do nascimento de Jesus, daí ser a sua morte e ressurreição a marca de contagem para os mil anos e não o seu nascimento), registou-se um aumento muito significativo das peregrinações. O peregrino despojava-se de tudo e preparava-se para a morte que gostaria de encontrar pelo caminho. Para ele, este pulsar misterioso que o atrai ao Santo Sepulcro era mais um presságio do fim dos tempos.
Após 1033, as forças do Mal recuaram, e entende-se que as medidas tomadas pela Igreja operaram este milagre de salvação. O Mal ainda estava presente, mas foi firmada uma nova aliança com Deus, e os tempos são de alegria e esperança. Um dos primeiros sinais do recúo da escuridão era sem dúvida a fertilidade dos solos, após anos de dificuldades e de fome.
A Igreja procedeu a uma profunda reforma, com a Regra de S. Bento a desempenhar um importante papel, vista como um exemplo de pureza e regeneração, visível principalmente nos beneditinos cluniacenses. Nasceu e fortaleceu-se o espírito da Cruzada, sendo a guerra contra os gentios uma forma de guerra contra o "Maligno", a favor do Bem e de Deus.
No trono do Império Germânico encontrava-se agora Otão I, reestabelecendo uma monarquia forte e estável, que não hesitou em se aliar à Igreja de Roma, oferecendo-lhe vastos territórios e proteção. Os Normandos e os Magiares sedentarizaram-se, por fim, e foram convertidos ao cristianismo. Iniciou-se assim uma nova fase de alguma estabilidade, que permitiu um novo período ascendente na Europa Ocidental.
O período compreendido entre os finais do século IX e os meados do século XI foi marcado por graves problemas que afetaram profundamente a Cristandade ocidental. Por um lado acabava-se de assistir ao desmembramento do Império Carolíngio, e em todo o Ocidente desaparecia uma força militar sustentada e respeitável. Do Sul sofrem-se os ataques dos muçulmanos, e vindos da Ásia Central, os magiares (húngaros) constituem uma nova ameaça. Os Normandos espalhavam também a destruição, agravando ainda mais a situação, e a Europa acabou por mergulhar no terror e no caos.
O papado já não dispunha da proteção do exército de Carlos Magno, ou dos seus descendentes, que se consideravam defensores da Cristandade, vendo-se inclusivamente mergulhado nas lutas pelo poder com uma nobreza ascendente nos reinos de Itália. Esta nobreza não aspirava apenas ao poder em Itália mas também ao controlo da Igreja, pelo que os papas são muitas vezes apanhados como joguetes nestes jogos de poder. Os conflitos arrastaram consigo um declínio progressivo do papado, sobretudo no que diz respeito aos campos da moralidade e da espiritualidade. Muitos cargos eclesiásticos foram atribuídos por nobres a membros das suas famílias, o que provocou um esvaziamento quase total da dignidade, da competência e da própria missão de cada cargo.
No decorrer do século X, a Europa assistiu ao declínio quase total das suas instituições civis e da sua cultura. As Igrejas eram frequentemente saqueadas por invasores ou mesmo por membros da nobreza, que anexavam bispados e mosteiros como se fossem propriedade sua. O próprio clero entrou em declínio, cada vez mais imoral e inculto, esquecido da sua missão.
Neste cenário o fim do Mundo parecia iminente, com grande parte da população cristã a acreditar que ele chegaria no ano mil.
Na verdade, desde as suas raízes, o cristianismo desenvolveu-se sob o estigma apocalíptico. Quase todos os teólogos, ideólogos e visionários da Igreja (pode-se excluir Santo Agostinho) vislumbravam o fim do Mundo e tentavam calcular a sua data. Os próprios mitos do Anticristo vão enchendo o imaginário, quer dos membros do clero, quer da população crente em geral. Nas vésperas do ano mil, à conjuntura já existente vieram juntar-se novas ameaças, como fomes e epidemias, e tudo se tornou num presságio agoirento de horror e destruição (cometas, eclipses, etc.). Os cristãos sentiam a presença do Diabo e entendiam todos os acontecimentos como o castigo dos seus pecados.
A defesa e a salvação eram vistas na penitência, no apelo para os Santos, na procura de relíquias, e nas peregrinações aos lugares santos. Assim esta foi uma fase de peregrinações coletivas a Jerusalém, a Roma, a Santiago de Compostela (cuja primeira basílica fora consagrada em 899), vistas como viagens santas de preparação para a morte e a promessa da salvação.
Segundo alguns autores, os relatos dos terrores do fim do Mundo durante o ano mil foram exagerados, sobretudo por cronistas eclesiásticos no século XVI. Estas afirmações têm pertinência sobretudo no que toca a textos (muito posteriores ao ano mil) que nos falam de céus que se abrem e da terra que engole tudo. Temos conhecimento de que poderá ter havido, naquela época, um tremor de terra (crónica de Sigberto de Gembloux, escrita no século XII), mas certos relatos são de tal forma exagerados que devemos colocar reservas quanto à sua autenticidade.
De qualquer forma, a conjuntura militar, política, social e cultural desta fase, aliada às fomes (1033) e pestes (997), os maus anos agrícolas, nas vésperas da passagem dos mil anos sobre a ressurreição de Cristo, provocou sem dúvida profundos receios na imensidão de fiéis que compunham a cristandade. Segundo o Livro do Apocalipse, ao fim de mil anos, o Mal invadirá o Mundo, sendo este o fundamento do milenarismo. Para os crentes, não seria difícil ver o Mal em todas as ameaças de povos inimigos, nos horrores da fome e da doença, nos prodígios que vinham dos céus (deu-se a passagem de um cometa em 1014, um eclipse em 1033, e um embate de estrelas em 1023).
Outro importante aspeto, visto como sintoma do fim dos tempos, foi o aparecimento das heresias e dos falsos profetas. Em 1017 surgiu um homem cujas ideias vão dar origem a um grupo de representantes do Anticristo. Alguns cónegos de Orleães tornaram-se maniqueus convictos e acabam por ser queimados como hereges. Na raiz destas disputas estão precisamente divergências quanto à riqueza da Igreja, que se encontrava cada vez mais afastada da sua missão inicial e mais entregue aos prazeres terrenos e materiais.
A destruição do Santo Sepulcro e a tomada de Jerusalém pelos muçulmanos constituíram também um rude golpe para a Igreja e para toda a cristandade. Segundo rezam as crónicas estes acontecimentos foram pressagiados por uma visão da cruz, que seria o derradeiro aviso. A partir desta fase iniciou-se o processo de identificação do Mal com o inimigo infiel, o mouro e o judeu. Estabeleceu-se inclusivamente uma imagem definida dos exércitos do Bem, vestidos de roupagens brancas, e dos exércitos do Mal, cobertos de vestes negras, numa associação clara com os muçulmanos.
Na viragem do ano de 1033, quando se deu o milénio da Paixão (a celebração da Páscoa assumiu uma importância muito superior à do nascimento de Jesus, daí ser a sua morte e ressurreição a marca de contagem para os mil anos e não o seu nascimento), registou-se um aumento muito significativo das peregrinações. O peregrino despojava-se de tudo e preparava-se para a morte que gostaria de encontrar pelo caminho. Para ele, este pulsar misterioso que o atrai ao Santo Sepulcro era mais um presságio do fim dos tempos.
Após 1033, as forças do Mal recuaram, e entende-se que as medidas tomadas pela Igreja operaram este milagre de salvação. O Mal ainda estava presente, mas foi firmada uma nova aliança com Deus, e os tempos são de alegria e esperança. Um dos primeiros sinais do recúo da escuridão era sem dúvida a fertilidade dos solos, após anos de dificuldades e de fome.
A Igreja procedeu a uma profunda reforma, com a Regra de S. Bento a desempenhar um importante papel, vista como um exemplo de pureza e regeneração, visível principalmente nos beneditinos cluniacenses. Nasceu e fortaleceu-se o espírito da Cruzada, sendo a guerra contra os gentios uma forma de guerra contra o "Maligno", a favor do Bem e de Deus.
No trono do Império Germânico encontrava-se agora Otão I, reestabelecendo uma monarquia forte e estável, que não hesitou em se aliar à Igreja de Roma, oferecendo-lhe vastos territórios e proteção. Os Normandos e os Magiares sedentarizaram-se, por fim, e foram convertidos ao cristianismo. Iniciou-se assim uma nova fase de alguma estabilidade, que permitiu um novo período ascendente na Europa Ocidental.
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Como referenciar
Porto Editora – Crises Milenaristas na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-12-06 16:37:56]. Disponível em
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