As histórias que nos matam

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Cultura e religião no Portugal medieval
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Com o recuo da presença árabe em Portugal desapareceu gradualmente o principal foco cultural existente no território do novo reino nascido em 1143. Em termos de cultura e ensino, prevalecia a matriz cristã como vetor primordial em termos institucionais ou em relação aos próprios conteúdos, formadores ou agentes difusores. Até ao século XI, as escolas portuguesas eram poucas, sendo possível que existissem poucas mais além da escola episcopal de Braga.

As referências concretas a esta escola são incontestáveis apenas no século XI, muito depois de S. Frutuoso se queixar a Bráulio, bispo de Sevilha, em pleno século VII, do estado lastimoso que imperava no Noroeste em termos de ensino, em estado bem mais atrasado, mas existente, face ao resto da Península. Há também uma alusão à escola bracarense numa obra francesa do século XVII, em que o autor atribui a sua fundação a um bispo de nome Martinho, governador da diocese até 572.
D. Dinis, fundador do Estudo Geral em 1290
Iluminura da Crónica da Tomada de Ceuta, primeira crónica conhecida de Gomes Eanes de Zurara
Os jograis constituíam importantes agentes da cultura poética e musical
Ilustração de Cantigas de Santa Maria, cancioneiro galego-português composto por Afonso X

Várias foram as escolas que funcionavam em catedrais em Portugal desde o século XI, ainda que animadas por um escopo quase sempre único de formação de sacerdotes: Braga, Coimbra, Porto, talvez Lamego. Todavia, o seu papel na instrução pública, ainda que abrangendo uma minoria da população, é inegável.

Também existiam algumas escolas paroquiais, ou nas colegiadas, mas merecem maior destaque as escolas dos mosteiros e, a partir do século XIII, as dos conventos. Nessas comunidades de religiosos animavam-se centros escolares, de dimensões variáveis, consoante o cenóbio, e de atividade ou dinâmica de acordo com o espírito do instituto religioso que os dirigia. Alcobaça, de Cister, e Santa Cruz de Coimbra, dos cónegos regrantes, que brilhavam também em São Vicente de Fora, Lisboa, eram as escolas monásticas de maior projeção no Portugal medieval.

Ali, à imagem do resto da Europa, administravam-se disciplinas e matérias próprias da formação básica do homem medieval, servindo de ponto de partida para os melhores rumarem às universidades da cristandade além-fronteiras. Muitos regressavam formados, ou bacharéis, ou, às vezes, doutores, para virem ensinar em ambos os tipos de escolas, catedralícias ou monástico-conventuais. Assim, ensinavam-se, principalmente nos mosteiros, as "artes liberais", divididas em dois grupos: o trivium (hoje do género "Letras"), composto pela Gramática (ensino de latim e estudo de alguns clássicos), Retórica (exercícios de redação e discussão de temas) e a Dialética (lógica e disciplinas teológicas); e o quadrivium ("Ciências"), que compreendia a Música, a Aritmética, a Geometria (com ligação à Geografia e à História Natural) e a Astronomia.

Santo Agostinho, patrono dos cónegos regrantes de Santa Cruz, defendia a necessidade de aprendizagem do trivium e do quadrivium para se poder ascender ao estudo e conhecimento da Teologia. Em Santa Cruz, como em Alcobaça, os códices produzidos detinham um interesse didático e eram um suporte pedagógico notável: casos das Etimologias de S. Isidoro de Sevilha ou obras de Santo Agostinho ou S. Jerónimo, por exemplo, para além de Hugo de S. Vítor. Alguns estudantes partiram para Paris no tempo de D. Sancho I, que apoiou os estudos de Santa Cruz. Todos os homens letrados, assim, recebiam a formação da Igreja, ou a maior parte dos mesmos pertencia a essa instituição.

Tardiamente surgiu em Portugal a Universidade, tendo em conta que na Itália, França e Inglaterra esta era uma instituição antiga, havendo já, também, centros de ensino similares em Castela e Aragão. Porém, não se pode desdenhar a hipótese de existir já em Portugal, ao longo dos séculos XII e XIII, uma animação cultural com alguma projeção, ainda que apenas ao nível nacional. O ensino em Portugal, nomeadamente a Universidade, desfrutava de pouca visibilidade internacional, muito em parte devido à falta de condições do País, e à sua lateralidade geográfica em relação à Europa, produtora de cultura e formadora de figuras e correntes científicas.

O pedido de fundação da Universidade data de 1288, reinava D. Dinis, sendo dois anos depois dada a confirmação papal, pela qual Nicolau IV aprovava o Estudo Geral, a funcionar em Lisboa. O monarca concede aos estudantes diversos privilégios, promovendo também a criação de um bairro escolar. Em 1308 dar-se-á a transferência para Coimbra, em 1338 para Lisboa, e regresso a Coimbra em 1354. Em 1377 regressa a Lisboa, altura em que ocorre a contratação de inúmeros mestres estrangeiros devido à falta de nacionais. A maioria dos professores e formandos pertencia à vida eclesiástica, ou com ela tinham qualquer tipo de relação.

Como disciplina de maior relevância, o Direito foi a que melhores níveis de qualidade e fama conheceu. Em 1380, o Papa Clemente VII funda novamente o Estudo Geral em Lisboa, onde lecionará o franciscano Álvaro Pais, eminente especialista em Direito e homem de vasta cultura. Ao longo do século serão criados cursos novos, como o de Teologia, para além da inclusão de novas cadeiras - Retórica, Aritmética, Astrologia... - nos programas curriculares do Estudo Geral, cada vez mais acarinhado e estimulado pelos soberanos, que lhe dão mesmo um "Estatuto Geral" em 1431.

Continuam a partir estudantes para o estrangeiro. Nesta época, por outro lado, as escolas episcopais decaíam, devido em parte à desorganização e decadência de algumas dioceses e principalmente do seu clero, para além de ser este o tempo das comendas delapidantes. Assiste-se também nesta altura a uma decadência da cultura de raiz teológica em detrimento da humanística e antropocentrista. Nos finais do século XV, e mercê da difusão da imprensa, surgiram em Portugal, no reinado de D. Manuel, os primeiros manuais pedagógicos.

Para além desta cultura veiculada pelo ensino e pelos seus organismos dinamizadores, dita oficial, não podemos deixar de abordar aquela que era apreendida em casa de senhores ou clérigos ou então na corte, onde eram acolhidos, desde o século XII, jograis que pela Europa fora deambulavam, autênticos agentes de cultura, principalmente poética ou musical. É a denominada cultura trovadoresca, menos estruturada em termos pedagógico-didáticos, mas de alcance e compreensão notáveis.

Em Portugal confluíam duas correntes, que gradualmente se assimilaram e formaram uma cultura trovadoresca original: a francesa e a islâmica. Cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e maldizer eram os três tipos de poemas trovadorescos de carácter profano predominantes entre os finais do século XII e a segunda metade do século XIV, pois existia igualmente a poesia religiosa, cujo título mais conhecido são as Cantigas de Santa Maria, compiladas por Afonso X, leonês de origem, mas escritas em galaico-português. Os trovadores provinham quase sempre da nobreza, mas os cantores dos seus poemas, os jograis, eram do povo, judeus, mouros ou nobres de baixa condição.

Entre os poetas mais conhecidos destaca-se a figura real de D. Dinis, rei de Portugal. Esta cultura trovadoresca acabou por ser um dos suportes da evolução da língua portuguesa a partir do galaico-português, apoiando e reforçando a definição da identidade cultural e nacional da jovem nação. Outros nomes da lírica trovadoresca há para recordar, para além daquele monarca, como Martim Codax, Pero Meogo, Rui Queimado, João Soares Coelho. O latim cai em desuso, cada vez mais remetido para a documentação oficial, onde já não era exclusivo, diga-se. Na prosa, para além de um romance de cavalaria, o Amadis de Gaula, do século XIV, de autoria portuguesa discutível, e de algumas traduções da Demanda do Santo Graal, do ciclo arturiano e das novelas de cavalaria, e de uma ou outra obra árabe ou judaica (na área do direito, da geografia, da história), pontificam as crónicas e cronicões e obras de carácter religioso - hagiográfico ou místico - feitas (traduzidas, diga-se ou copiadas) por clérigos ou, quase sempre, nos scriptoriae monásticos (Alcobaça, St.a Cruz, Lorvão, S. Vicente de Fora, Pombeiro, Tibães...).

Para além do Apocalipse de Lorvão (1189) ou da História Natural das Aves (1183), muitos são os códices contendo traduções da Regra de S. Bento, "Vidas de Cristo" e de outros manuais de espiritualidade e ascese (Boosco Delleitoso, Vergel de Consolaçom...). Na prosa portuguesa medieval, assinale-se também a existência de fábulas e bestiários (desde a citada História Natural das Aves (1183) ao Livro de Esopo ou Fabulário Português (século XIV), "estorias ffremosas d´animalias, de homens e de aves e de outras cousas". Falou-se em crónicas e cronicões (a "história" ao serviço dos reis, como a Crónica da Conquista do Algarve, a Crónica de D. João I, a Crónica da Tomada de Ceuta, a Crónica dos Feitos da Guiné, entre outras crónicas da vida de outros reis, e as Crónicas Breves e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, estas de carácter religioso), obras de prosa histórica, género que abarca também as hagiografias (Vida de S. Telo, Vida da Gloriosa Santa Isabel, Rainha de Portugal, Vida de S. Gonçalo de Amarante, e os nobiliários (Livros de Linhagens, Nobiliário do Conde D. Pedro).

Muitos destes códices medievais foram plasmados na célebre Portugalia Monumenta Historica por Alexandre Herculano e João Pedro da Costa Basto. De referir ainda, na prosa medieval, alguns dos mais fecundos e afamados cronistas: Fernão Lopes (c. 1380-c. 1460), Gomes Eanes de Zurara (1420?-1474?), para além de Rui de Pina (1440?-1522). Da poesia palaciana do século XV, de influência italiana (Dante, Petrarca), veja-se todo o conjunto de títulos de carácter lírico, satírico, dramático, didático e religioso produzidos na corte desde Afonso V até D. Manuel I e compilados no Cancioneiro Geral por Garcia de Resende, em 1516. Para finalizar, e dentro do quadro da autonomia linguística portuguesa atingida no século XV, não é de esquecer a chamada "prosa doutrinal de Avis", cujo expoente máximo foi o rei D. Duarte (1391-1438), sucessor de D. João I, seu pai, em 1433. Fazendo jus ao cognome de Eloquente que a tradição lhe outorgara, D. Duarte escreveu alguns ensaios de carácter pragmático, moral e de parenética cristã, dos quais se destacam o Leal Conselheiro e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar em Toda a Sella, monumentos da literatura de língua portuguesa.

Como se referiu atrás, pertencia à Igreja o grande papel de formadora e moldadora da cultura e mentalidades no Portugal medieval, no qual assumia um protagonismo avassalador. Desde conselheiros ou confessores de reis, rainhas ou príncipes, para além de senhores terratenentes, a voz dos homens da Igreja chegava a todos e de forma ainda mais viva ao povo, que os seguia e escutava, ainda que por vezes lhes fosse avesso. O clero dividia-se em dois grupos: o secular, composto pelas dioceses, sua hierarquia, cabidos e seus sacerdotes, bem como pelas colegiadas, este muito mais numeroso; e pelo regular, isto é, sujeito a uma regra e vivendo quase sempre em comunidade, em mosteiros (monges e monjas) e conventos (frades) ou então em cenóbios de cónegos regrantes, como os de Santa Cruz de Coimbra, de Premontré, etc.

Neste último grupo do clero, existia, portanto, um ramo feminino, de vida claustral em perpétua clausura. Existiam também outras formas em religião toleradas pela Igreja, como a dos eremitas (em Portugal, são célebres os da Serra de Ossa, que se transformam em ordem), os emparedados ou as beguinas, estas últimas exclusivamente femininas. Com as ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos, carmelitas, agostinhos), entraram as congregações de terciários, de ambos os sexos, com uma vida menos contemplativa, mais mitigada e mais exposta ao século.

As dioceses do Portugal medieval acompanharam o desenvolvimento da Reconquista Cristã no país. Para além de Braga e Portucale (Porto), núcleos mais antigos e de forte tradição suevo-visigótica, surgiram depois Coimbra, Lamego, Egitânia (Idanha), Viseu, Lisboa, Évora, Pax Júlia (Beja, depois desaparecida até 1770), Silves e Guarda. Por vezes em conflito aberto com os monarcas, os bispos foram elementos-chave na consolidação do poder local e no desenvolvimento político e social do país, para além de contribuírem largamente para o desenvolvimento da cultura e do ensino. As ordens religiosas tiveram também a sua importância nessa dimensão cultural e do ensino em Portugal, para além da sua vertente religiosa.

No Norte, predominava a tradição beneditina, solidamente implantada em Entre Douro e Minho (Tibães, Pombeiro, Cete, Paço de Sousa, Rendufe, Ganfei), com o ramo cisterciense a fixar-se primordialmente no Alto Douro, na margem esquerda deste rio (Tarouca, Águias, Salzedas, Aguiar) e avançando depois pelo centro do país (Alcobaça, Lorvão), acompanhando a Reconquista. As regiões no Norte em torno dos domínios dos monges negros de S. Bento, pioneiros na instalação de mosteiros nessas áreas, foram ocupadas pelos cónegos regrantes de S.to Agostinho (Moreira da Maia, Vilela, Caramos, Roriz), mais abertos à sociedade e mais próximos das cidades, onde se fixam cada vez mais, como em Coimbra e Lisboa, onde rivalizam com o clero local, o que voltará a acontecer depois do século XIII, quando os Franciscanos e Dominicanos fundaram conventos nos principais núcleos urbanos do país, atraindo donativos, benesses e privilégios, doações e muitos devotos.

Esta situação irritará a clerizia e cabidos das cidades principais do país, como o Porto, Leiria, Braga, Guimarães, por exemplo, onde os frades serão alvo de violências e atitudes menos próprias de sacerdotes diocesanos, que dificultarão a presença dos mendicantes nas suas esferas de ação apostólica. Só a intervenção papal - e a custo - acalmará a situação. Todavia, o contributo dos mendicantes para a cultura e ensino em Portugal na Idade Média será fundamental e inquestionável, assumindo-se os seus conventos como grandes polos de irradiação cultural e plataformas de circulação de aportações científicas vindas do estrangeiro, com o qual intercambiavam fortemente, fosse em religiosos e mestres, fosse por via da sua própria organização internacional.

Apesar de estrelas reluzentes e culturalmente ativas e determinantes no firmamento nacional das ordens religiosas e da sua influência e espetro positivo na vida quotidiana e mental dos portugueses, os conventos e mosteiros não conseguiram conter a decadência dos seus efetivos e da instituição religiosa em que estavam incorporados, deixando-se abater e minar pelas comendas e rapinas dos poderes civis emergentes no século XV.

Por último, no contexto da história religiosa e cultural do Portugal medievo, um acontecimento marca indelevelmente a Europa e o nosso país: o Cisma do Ocidente. Com a morte de Gregório XI em 1378, é eleito, em abril, um papa italiano (devido a pressão popular), Urbano VI, o que desagradou aos cardeais franceses, que, manobrados pelo seu rei, Carlos V, se pronunciaram contra aquele pontífice e elegeram um outro, Clemente VII, a 20 de setembro do mesmo ano. Urbano VI mantém-se em Roma, Clemente VII instala-se em Avinhão, criando-se uma divisão de obediências que afetará profundamente todos os países europeus, as suas dioceses e as ordens religiosas, criando-se um clima de acusações, ódios e confrontos, quer no plano espiritual, quer no plano temporal.

Prolongou-se este Cisma até 1417, aquando da eleição unânime de Martinho V. Portugal, na figura de D. Fernando, logo reconheceu Urbano VI como chefe da Igreja. Porém, as dúvidas surgiram e o rei apelou para um conselho de prelados e letrados, que se manifestou pela neutralidade do país face ao Cisma, repetindo a mesma "sentença" em 1379, aquando da chegada de legados de Avinhão para pressionar o rei a tomar o seu partido. Apesar de neutro, Portugal não renegava Urbano VI. Existiam, entretanto, bispos, clérigos e religiosos a favor dos avinhonenses, tendo o partido de Roma do seu lado Braga, Porto e Lamego.

A pressão do rei de França e de sucessivas legações de Avinhão levaram, contudo, D. Fernando a declarar-se, em 1380, por esta fação, cujo Papa Clemente VII, segundo documentos da época, nomeava prelados para dioceses que não lhe eram fiéis, o que causava confusão e mal-estar nas populações. Castela, por seu lado, enfileirava por Avinhão. Nas guerras entre este reino e Portugal, o problema do Cisma será um dos pomos de discórdia entre as duas nações. Os ingleses que vieram então apoiar D. Fernando, fiéis a Roma, pressionam o monarca português no sentido de aderir a Urbano VI, o que de facto acontece em 1381, a que se sucede depois a paz com Castela, em 1382. Velho e cansado, pressionado pelos avinhonenses, nomeadamente pelo cardeal Pedro de Luna, castelhano, D. Fernando não mais sairá da órbita romana.

Com a crise dinástica de 1383, após a morte do dito rei, reacende-se a questão do Cisma na Península, inflamada pelo reconhecimento por parte de Clemente VII de D. João de Castela como rei de Portugal, o que reforçou a fidelidade dos partidários de Avis ao papa romano, que condena violentamente o monarca castelhano. João das Regras, por exemplo, foi uma das figuras que mais defenderam Roma, alegando então que Portugal, como nação, não poderia nunca seguir um papa cismático. Na ata de eleição e aclamação de D. João I nas cortes de Coimbra de 6 de abril de 1385, é amplamente sublinhada a fidelidade nacional a Roma, classificando-se até, nesse texto, o pontífice de Avinhão como "antipapa".

Durante o Cisma, como se viu, as nove dioceses - Lisboa, Coimbra, Guarda, Viseu, Silves, Évora, Braga, Porto e Lamego - do país oscilaram entre os dois papas, criando situações dúbias e acesas polémicas. As dioceses nortenhas, refira-se, foram as únicas que se mantiveram sempre sob Roma, resistindo a pressões e nomeações clementinas. Tal como o clero secular, nem sempre obediente ao seu bispo, também as ordens religiosas se viram minadas pela divisão e querelas entre os dois partidos, havendo superiores, comunidades ou simples religiosos a dividirem-se e a digladiarem-se em acusações e discussões em torno da legitimidade do pontífice a que deviam obedecer.

Esta situação acelerou ainda mais um clima de decadência e relaxamento por parte do clero, principalmente o regular, que se via desprovido muitas vezes de liderança única ou univocidade em termos programáticos e de ação. O sentimento religioso por parte do povo viu-se também toldado e abalado por esta divisão, o que propiciou críticas, deceções, afastamentos e hesitações perante a bicefalidade da hierarquia.

Para finalizar, não se pode olvidar, no contexto religioso do Portugal medievo, a presença das minorias étnico-religiosas, mais visíveis em termos sociais ou económicos do que do ponto de vista espiritual, pois estas eram cada vez mais reduzidas ou então cingiam-se a comunidades fechadas e isoladas da sociedade cristã maioritária. Falamos dos judeus e dos "mouros" (muçulmanos), estes últimos resquícios da presença islâmica (árabe e berbere) na Península, ultrapassados pela Reconquista e até ao século XVI confinados a pequenos núcleos sobreviventes, principalmente no Sul de Portugal. Foram quase sempre tolerados, como os judeus, ainda que sofrendo ambas as comunidades algumas perseguições, principalmente no século XIV, tempo de todas as desgraças, da fome, da peste e da guerra, e que, como aconteceu em toda a Europa, foram acusados de serem os responsáveis de todos esses flagelos.

Se a sua participação na vida ativa, económica e cultural era assinalável e de grande importância - principalmente os judeus, urbanos e próximos das esferas do poder, ao contrário dos "mouros", ruralizados e afastados dos centros de decisão - em termos religiosos mantiveram-se fechados, seguindo sempre, em termos de culto, práticas devocionais e tradição segundo os seus preceitos e pilares de fé essenciais. Existiam várias sinagogas judaicas, mas, quanto a mesquitas, estas provavelmente não existiam (ou eram poucas e pequenas), pelo que os cultos islâmicos realizavam-se provavelmente em casas particulares.

Estes últimos, os muçulmanos, em parte reduzidos à servidão - com libertação gradual ("mouros forros") pelos monarcas, que os protegeram ao longo da Idade Média -, eram, curiosamente, mais bem vistos pelos cristãos, que acusavam os judeus de arrogância e sobranceria provocatória e sobre eles exerciam mais atos de violência esporádica. Esta situação de tolerância e coexistência mais ou menos pacífica entre cristãos e minorias semíticas terminou no reinado de D. Manuel, com a expulsão e conversão à força de judeus e "mouros", à imagem de Espanha.
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Porto Editora – Cultura e religião no Portugal medieval na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2025-03-24 13:06:47]. Disponível em
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