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Memorial do Convento
Romance de José Saramago publicado em 1982 e reeditado em 2002. A ação de Memorial do Convento desenvolve-se no reinado de D. João V, incidindo designadamente sobre o período de construção do Convento de Mafra, como indicia o título.
O período em questão surge caracterizado através de personagens históricas propriamente ditas, como sejam aquelas da família real, mas também através de atmosferas marcadas por fenómenos populares do tempo, como os famosos autos de fé (em que uma das personagens principais virá a morrer com António José da Silva), as procissões e as touradas. A partir destas coordenadas se configura, por um lado, o mundo artificial e ostentatório da realeza, por outro, um ambiente estratificado de ignorância e superstição evidentes no Portugal da primeira metade do século XVIII, sob a égide do Santo Ofício.
A contaminação desta narrativa pela noção de que a História e mesmo a Literatura fabricam o romance da humanidade a partir do ponto de vista dos seus senhores é evidente em todo o enunciado, nomeadamente a partir da definição das suas personagens principais. É com figuras nobres que Memorial do Convento começa. No entanto, contrariando as expectativas dos leitores, o narrador parece encarar com alguma ironia a sua (ausência de) densidade psicológica, facto que é tanto mais chocante quanto se trata do rei e da rainha. Surpreendentemente, é no meio da multidão, tradicionalmente anónima, que sobressaem, ambos elementos do povo, Blimunda Sete-Luas, a mulher que vê o interior das pessoas se estiver em jejum e Baltasar Sete-Sóis, aquele que perdeu uma mão na guerra, e Bartolomeu de Gusmão, o padre "voador", nos quais assentará a espinha dorsal da ação.
Esta joga-se, por um lado, na edificação do referido Convento ("por um voto que o rei fez se lhe nascesse um filho") e as vidas e fundos que compromete, e, por outro, na construção paralela da Passarola pelas supra-citadas personagens principais, espécie de Santíssima Trindade profana.
Enquanto o Convento representa o sacrifício caprichoso da coletividade humana vergada a uma vontade individual e, por conseguinte, a deceção da aventura coletiva humana tal como a História não a conta, a Passarola, construída por Baltasar a partir dos planos de Bartolomeu de Gusmão, e voando graças às vontades humanas contidas nas suas esferas que Blimunda captara nos corpos das pessoas, simboliza de algum modo a condição angélica do Homem, ou, mais do que isso, a revelação da condição humana (nas suas entranhas, nos seus fluidos, nos seus cheiros, nas suas rugas, etc.) como condição divina: "Deus estava fora do homem e não podia estar nele, depois, pelo sacramento passou a estar nele, assim o homem é quase Deus, ou será afinal o próprio Deus, sim, sim, se em mim está Deus, eu sou Deus, sou-o de modo não trino ou quádruplo, mas uno, uno com Deus". É esta revelação "sacrílega" que enlouquece Bartolomeu, levando-o a tentar queimar a Passarola depois de, temendo o Santo Ofício, ter nela fugido, com Baltasar e Blimunda.
Depois da aventura da Passarola, Baltasar trabalhará ainda no Convento, esse monumento cuja massa monstruosamente inumana vai ascendendo, apesar de tudo, como a Passarola, e revelando a história profana do Homem como uma história de redenção.
Deste modo, José Saramago reescreve as convenções históricas, religiosas e literárias da nossa cultura, mostrando, como salienta Eduardo Lourenço, que, à semelhança da Passarola, "o fim de toda a ficção é voar, elevar-se sobrevoando, não céus inexistentes nem realidades mágicas, mas descolar da sua própria realidade humana, pesada, obscura, opaca, para ver melhor ou de outra maneira (...)".
Em finais dos anos noventa, esta obra foi adaptada ao teatro por Manuel Real e Filomena Oliveira.
O período em questão surge caracterizado através de personagens históricas propriamente ditas, como sejam aquelas da família real, mas também através de atmosferas marcadas por fenómenos populares do tempo, como os famosos autos de fé (em que uma das personagens principais virá a morrer com António José da Silva), as procissões e as touradas. A partir destas coordenadas se configura, por um lado, o mundo artificial e ostentatório da realeza, por outro, um ambiente estratificado de ignorância e superstição evidentes no Portugal da primeira metade do século XVIII, sob a égide do Santo Ofício.
A contaminação desta narrativa pela noção de que a História e mesmo a Literatura fabricam o romance da humanidade a partir do ponto de vista dos seus senhores é evidente em todo o enunciado, nomeadamente a partir da definição das suas personagens principais. É com figuras nobres que Memorial do Convento começa. No entanto, contrariando as expectativas dos leitores, o narrador parece encarar com alguma ironia a sua (ausência de) densidade psicológica, facto que é tanto mais chocante quanto se trata do rei e da rainha. Surpreendentemente, é no meio da multidão, tradicionalmente anónima, que sobressaem, ambos elementos do povo, Blimunda Sete-Luas, a mulher que vê o interior das pessoas se estiver em jejum e Baltasar Sete-Sóis, aquele que perdeu uma mão na guerra, e Bartolomeu de Gusmão, o padre "voador", nos quais assentará a espinha dorsal da ação.
Esta joga-se, por um lado, na edificação do referido Convento ("por um voto que o rei fez se lhe nascesse um filho") e as vidas e fundos que compromete, e, por outro, na construção paralela da Passarola pelas supra-citadas personagens principais, espécie de Santíssima Trindade profana.
Enquanto o Convento representa o sacrifício caprichoso da coletividade humana vergada a uma vontade individual e, por conseguinte, a deceção da aventura coletiva humana tal como a História não a conta, a Passarola, construída por Baltasar a partir dos planos de Bartolomeu de Gusmão, e voando graças às vontades humanas contidas nas suas esferas que Blimunda captara nos corpos das pessoas, simboliza de algum modo a condição angélica do Homem, ou, mais do que isso, a revelação da condição humana (nas suas entranhas, nos seus fluidos, nos seus cheiros, nas suas rugas, etc.) como condição divina: "Deus estava fora do homem e não podia estar nele, depois, pelo sacramento passou a estar nele, assim o homem é quase Deus, ou será afinal o próprio Deus, sim, sim, se em mim está Deus, eu sou Deus, sou-o de modo não trino ou quádruplo, mas uno, uno com Deus". É esta revelação "sacrílega" que enlouquece Bartolomeu, levando-o a tentar queimar a Passarola depois de, temendo o Santo Ofício, ter nela fugido, com Baltasar e Blimunda.
Depois da aventura da Passarola, Baltasar trabalhará ainda no Convento, esse monumento cuja massa monstruosamente inumana vai ascendendo, apesar de tudo, como a Passarola, e revelando a história profana do Homem como uma história de redenção.
Deste modo, José Saramago reescreve as convenções históricas, religiosas e literárias da nossa cultura, mostrando, como salienta Eduardo Lourenço, que, à semelhança da Passarola, "o fim de toda a ficção é voar, elevar-se sobrevoando, não céus inexistentes nem realidades mágicas, mas descolar da sua própria realidade humana, pesada, obscura, opaca, para ver melhor ou de outra maneira (...)".
Em finais dos anos noventa, esta obra foi adaptada ao teatro por Manuel Real e Filomena Oliveira.
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Como referenciar
Porto Editora – Memorial do Convento na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-12-07 21:25:37]. Disponível em
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