O Que Diz Molero
Obra de Dinis Machado, a narrativa desenvolve-se a partir do diálogo entre duas personagens, Mister Deluxe e Austin, sobre o que diz uma outra personagem ausente, Molero, num relatório sobre um rapaz. A análise feita pelos dois interlocutores do relatório de Molero sobre a vida e sobre o livro escrito pelo rapaz, Angel Face, é o ponto de partida para a multiplicação de comentários, digressões, histórias contadas pelos interlocutores, por Molero ou pelo rapaz, numa estrutura em mise en abîme, que implica, ao longo dos três níveis locutórios, o contínuo diferido sobre o que é dito, contado, pensado ou feito, por uma multiplicidade de outras personagens fixadas no imaginário do rapaz. Nesta estrutura mirabolante, O Que Diz Molero é um livro sobre o que duas personagens dizem sobre o que diz Molero num livro sobre um rapaz, na verdade, menos sobre o rapaz do que sobre o que disseram ou fizeram personagens que marcaram a infância e existência do rapaz: os pais do rapaz, uma tia louca, o Vampiro Humano, o Descoiso, o Zuca, Evaristo, Leduc, o Eremita das Mãos Frias, Cláudio, etc.
Apesar do encaixe dos discursos, cada um dos níveis desenvolve a sua autonomia e liberta-se do hipotexto que o gera: é assim que o relatório de Molero se encontra anotado a lápis pelo próprio Molero e constitui, para além do seu esforço mimético de registo, reconstituição, explicação da obra do rapaz, a oportunidade de tecer considerações pessoais de vária ordem, de se divertir com pormenores subsidiários, de compor alguns trechos que acusam uma "forma sofisticada de nausée (p. 64); ao mesmo tempo, os dois interlocutores que recebem a avalancha de mitos culturais, de dúvidas, de pensamentos, vão sendo possuídos por um sentimento de saturação das aquisições humanas e tomando, a pouco e pouco, consciência, como as personagens de Beckett, de uma condição humana absurda ("a gente nem sabe do que as pessoas são capazes para iludirem a ausência de um sentido para a vida, para escaparem à miséria ou ao peso dos outros", p. 61).
Adaptada ao teatro por Nuno Artur Silva, em 1996, tudo nesta narrativa apontava com efeito para a sua encenação: a indeterminação do tempo histórico, remetido para momentos da vida e da infância do rapaz, impunha como balizas temporais precisas um tempo do discurso que coincide com o início e o fim do diálogo entre Austin e Deluxe; a redução do espaço a um cenário onde se situam os interlocutores, mesmo se evocador de outros espaços por onde passou o rapaz; o alucinante encaixe de narradores (um narrador conta o que duas personagens contam sobre o que Molero conta sobre o que o rapaz conta), que em última análise põe em causa a existência de uma voz narrativa em benefício de múltiplas interpretações e mediações no acesso à realidade; a ausência de uma intriga, reduzida ao "enigma" sobre o rapaz constituído por Molero ou às várias histórias contadas; a eliminação de capítulos, substituídos por espaços brancos que marcam as pausas da conversa, antes de ser relançada por uma associação de ideias, de palavras, ou pelo desfolhar do relatório; o facto de todas as personagens só existirem enquanto suportes de um discurso, que versa sobre personagens que se encontram fora do discurso, porque as suas histórias são diferidas por outro discurso; e, em suma, o facto eminentemente teatral de o conteúdo de O Que Diz Molero se resumir a palavras ditas, fixadas oralmente num tempo presente ou reportadas a um tempo passado, em discurso direto ou indireto.
A narração comunga, com efeito, das características estilísticas usadas por Molero no relatório, nomeadamente, "o fascínio da oralidade, a linguagem solta, pretensamente feérica, elaboradamente descuidada, a cantata do vocábulo popular, a envolvência rítmica, a construção sincopada, musical, [...] a prosa festiva, galopante de frases que geram frases e que repescam outras, abrindo ou fechando janelas sobre a narrativa" (p. 144). Por esse triunfo da oralidade e por "uma imagística ligada ao mundo da marginalidade cultural do Ocidente", pelo reflexo de uma "mitologia vivida da conotação cinematográfica [...], uma poesia do quotidiano feérico de uma capital de segunda mão em matéria de imaginário onde todas as "imagens" dos outros se volvem em mitos caseiros de prodigiosa dinâmica pícara", e pelo êxito com que foi recebida, Eduardo Lourenço vê nesta obra um indício das novas relações entre texto contemporâneo e cultura, ou, pelo menos, um exemplo representativo do relevo assumido por "uma nova cultura" que já não recebe da modelação escolar os seus tópicos decisivos" (cf. LOURENÇO, Eduardo - O Canto do Signo, Lisboa, 1994, p. 281).
Ao mesmo tempo, O Que Diz Molero compõe, integrando uma tendência da novelística contemporânea para a revisão das coordenadas culturais e ideológicas do mundo ocidental, a história do Homem contemporâneo, situado num tempo posterior à rutura entre linguagem e realidade (operada por "Erculano", quando inaugurou a espera da "palavra-resumo, também palavra-origem, ou palavra-madrugada, [...] a palavra-espelho de um Narciso feito de negações sucessivas, ignorando tudo o que estivesse além de si mesmo" (p. 89), submerso por todos os discursos recebidos ao longo da história e para quem a palavra, carregada com tantos sentidos, parece já não ter sentido nenhum que não o da sua impotência.
Nesta medida, o relatório fala não do rapaz mas "da outra parte da verdade que se escapa [...], fala da vida que se esconde em cada ser, do fluido em que essa vida continuamente se perde e reencontra, esse universo privado de sensações subtis que perseguimos e que nos perseguem [...], o relatório omite tudo o que ele, Molero, não sabe, apenas entrevê às vezes no seu emaranhado de notas, de observações, de ideias, de associações de ideias, ficando, de qualquer modo, e para sempre, a certeza de que falta uma parte vital dessa vida, a sua substância mais alada [...], o relatório é apenas um esforço orientado numa linha eminentemente superficial (...)", p. 65). Austin, Mister Deluxe, Molero ou Rapaz; O Que Diz Molero, Relatório, ou Angel Face, o eu é o outro e é o mesmo, estilhaçado, igual e diferente do que cria, igual e diferente da imagem construída pelos outros, real e ficcional: "Em caixa alta", disse Austin, "também a lápis, Molero escreveu: como diz Flaubert, Madame Bovary sou eu [...] Houve uma pausa. "Angel Face sou eu", disse Austin, olhando para Mister Deluxe" (cf. 31).
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