Romance de Renart
O Romance de Renart (Le Roman de Renart), escrito entre 1170 e 1250, consiste num conjunto de 27 poemas, em versos octossilábicos, reunidos, ao longo do século XIII, de forma incoerente e caótica, que pertencem a vários autores, na maioria anónimos, mas dos quais se destaca Pierre de Saint-Cloud. As personagens destas histórias são animais, sendo a mais importante a raposa (renart, ou renard, isto é, uma raposa), e nelas se parodia as canções de gestas e os romances corteses que enalteciam a sociedade cavaleiresca.
Esta recolha de textos deriva de uma longa tradição de histórias sobre animais, escritas em latim; das fábulas de Esopo, que foram recolhidas e agrupadas, na Idade Média, e intituladas Isopetos; da história de Ysengrinus (1148-49) do clérigo flamengo Nivard, onde já se encontra a personagem Reinardus.
Renart (a raposa) é uma personagem que tem uma grande recetividade junto do imaginário popular francês, desde a Idade Média até aos nossos dias, e que aparece sobretudo na literatura infantil. O termo "renart" atingiu um valor tão grande na língua francesa que chegou a substituir outros termos da língua para designar raposa. Renart é um herói complexo e uma personagem que assume diversas formas: um pequeno diabo, um ladrão de bolos, um malicioso sedutor ou um demónio hipócrita. Nas fábulas, assume o papel de um animal astucioso, manhoso e inteligente com admirável e persuasivo dom da palavra. Simuladora, a raposa pretende levar a melhor sobre os outros.
Numa história da obra, Renart encontrou o lobo Ysengrin e convenceu-o a pescar com um balde, deixado por camponeses, num lago gelado donde se retirava água para os animais. O lobo aceitou e pediu à raposa que atasse o balde à sua cauda que ficou sobre um buraco do lago. Ficou imóvel à espera do peixe, enquanto a raposa se escondeu. A água solidificou e o lobo não conseguiu mexer-se, dado que o balde ficara preso no lago. Julgando que o balde estava cheio de peixe, pediu à raposa para ajudar a puxá-lo, mas esta riu-se e foi-se embora, comentando que "quem tudo quer tudo perde". Entretanto, aproximou-se uma caçada liderada pelo nobre da região, e Ysengrin, para poder fugir dos cães, deixou para trás a cauda que ficou presa no gelo. O lobo prometeu então vingar-se de Renart.
Noutra história, Renart, cheio de fome, avistou o corvo Tiecelin, que estava muito concentrado, em cima duma árvore, a comer um queijo que tinha entre as patas. A raposa elogiando a sua bela voz, pediu-lhe por várias vezes que cantasse até que o corvo, vaidoso, largou o queijo que caiu aos pés de Renart. Este, embora impaciente, não lhe tocou porque tinha intenção de comer também o corvo; por isso disse-lhe lamentando que o queijo cheirava tão mal que não lhe tocava e que fosse apanhá-lo ao chão. O corvo assim fez e Renart saltou-lhe em cima, mas o corvo conseguiu fugir.
Numa outra história, Renart e Ysengrin encontravam-se, ambos cheios de fome, à hora do almoço, junto à casa do padre. A raposa queria ser perdoada pelo episódio do lago e disse ao lobo que podia ir com ele ao celeiro do clérigo que se encontrava cheio de presuntos e de outras iguarias. Ysengrin não resistiu à descrição de tantas delícias e acompanhou-o à entrada do celeiro, onde Renart insistiu com o lobo para que entrasse, primeiro, já que a entrada era muito estreita. Ysengrin entrou e comeu o mais que pode mas, quando queria sair, não conseguiu por causa da sua barriga cheia. Renart, depois de se rir da situação, tentou retirá-lo, mas sem êxito. Foi, então, buscar uma corda à cozinha do cura. Aí, a sua atenção centrou-se numa galinha assada que estava em cima da mesa e que Renart tentou roubar. Descoberto, foi perseguido pelos criados e pelo padre por toda a casa até ao celeiro, onde Renart se escondeu. Quando o padre aí chegou, encontrou o lobo Ysengrin, que, por pouco, não morreu de tanta pancada.
Estes são apenas três dos muitos episódios de Renart que há séculos deliciam e divertem crianças e adultos. As suas muitas aventuras têm lugar num universo de animais, com características humanas. O tom satírico dos textos revela a crítica social, cujos temas são a fome, a pobreza e a exploração.
A primitiva versão d'O Romance de Renart conheceu vários desenvolvimentos, como Renart, le Bestourné (1261-1270) de Rutebeuf; Renart, le Nouvel (cerca de 1288), de Jacquemart Gellée; Le Couronnement de Renart (perto de 1330), de um anónimo flamengo; e Renart, le Contrefait (por volta de 1330) de um anónino de Troyes que, em 60 000 versos, reuniu todas as aventuras da personagem.
O Romance de Renart esteve em grande voga e foi, muitas vezes, imitado, sobretudo, na Alemanha. Inspirou, ainda, outros escritores, como La Fontaine, Rabelais, Edmond Rostand, Louis Pergaud e Aquilino Ribeiro.
Ler excerto da obra
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