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Sinto amiúde que escrevo e publico para aceitar melhor a morte. É, de resto, bem velha a necessidade de se criar algo que se veja e palpe. Fazemo-lo, enquanto espécie, desde que fomos capazes de desenhar em paredes de cavernas. E continuamos a fazê-lo mesmo sabendo da efemeridade e da dimensão infinitesimal daquilo que criamos face à perenidade dessas inscrições. É, pois, uma necessidade que depende sobretudo da ação e não apenas do efeito. Talvez seja por isso que pouco me importa discorrer ou teorizar a propósito daquilo que escrevo. Gosto mais de ler ou ouvir quem me lê a fazê-lo. Os leitores – e não me refiro somente aos especializados – ensinam-nos muito mais sobre o que escrevemos do que todas as lucubrações tecidas no íntimo do nosso ego. A mim compete-me escrever. Acredito que o romance, o género a que de momento me dou, é um veículo privilegiado para iluminar o tempo de cada autor e que dessa mostra poderá resultar reflexão, a par de emoção, aprendizagem, viagem e tantos outros ganhos. Nos dois romances que publiquei, procurei iluminar realidades que considero importantes e às quais me parece não se dar a devida atenção. Interessava-me dizer isto, mas, em rigor, inicio este texto da mesma forma que Beta, a narradora, começa o meu mais recente romance, Morro da Pena Ventosa: a protelar o que há para fazer. Com uma diferença: ela fá-lo a partir de um caixão.
Guia turística, nascida e criada na Sé do Porto, no morro da Pena Ventosa, o lugar em que nasceu a cidade, o Porto primitivo, muralhado, de vielas estreitas e sombrias, Beta vê-se a braços com a desgraça: a morte da avó que a criou e que foi também mãe, pai e irmã, e a necessidade de sair da única casa em que viveu. Partilha a grande tristeza e o desnorte que daí decorrem com uma misteriosa melhor amiga, conhece um homem não menos misterioso, ao mesmo tempo que mostra a cidade aos turistas que, tal como lhe dão o pão, lhe tiram a casa. Mostra-lhes o Porto antigo, das casas encavalitadas, dos azulejos biselados e coloridos, das igrejas banhadas a ouro, dos vinhos e petiscos, dos dizeres típicos, dos rios subterrâneos, dos historiadores e dos poetas, mas também o novo, dos hotéis, dos bares, dos restaurantes, das línguas várias, das trotinetas, dos sunsets e dos autocarros panorâmicos. Até que um terrível acontecimento coletivo vem mudar a vida da cidade – que é cenário, mas também personagem desta história – e lançar-lhe um grande desafio. Como irá lidar com ele a antiga, mui nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto? E como irá Beta resolver a própria vida?, se é que a vida algum dia se resolve.
Talvez porque, como escreveu João Miguel Fernandes Jorge, “o Porto é descer descer até ao Douro”, será junto ao rio que tudo ganhará sentido. Mas como? Alberto Manguel diz que a imaginação é uma excelente ferramenta para nos vingarmos da vida e, neste livro, é isso que, em boa medida, acontece. Dá vontade de recorrer de novo à poesia, essa arte de que Beta tanto gosta, e lembrar aqueles versos de Pedro Homem de Melo, cantados de forma perfeita por Camané: “sei de um rio / rio onde a própria mentira / tem o sabor da verdade.”
Rui Couceiro