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Eusébio Macário
Narrativa de Camilo Castelo Branco publicada em 1879. Tal data e o seu subtítulo, História Natural e Social de Uma Família nos Tempos dos Cabrais, desde logo nos transmitem pistas sobre o contexto sociocultural do texto em questão.
Quando pensamos nos citados Tempos dos Cabrais, pensamos no período de amolecimento político que sucedeu à violência da guerra civil (1828-1834).
Talvez o acontecimento político mais marcante deste período tenha sucedido em 1849, o chamado «ano da caleche»: Costa Cabral, ministro do Reino, recebera de um negociante uma caleche em troca de uma comenda. Vivia-se então uma fase de estabilidade marcada por contiguidade ideológica e programática das fações partidárias, circunstância que favoreceu o rotativismo bipartidário, mecanismo típico do liberalismo parlamentar inglês. A maioria da população, sem consciência política e independência económica, era manipulada pelos caciques, que pagavam os votos com promessas de nomeações, proteções e outros favores. Por esta altura, este mundo estava acolhendo um outro modelo estrangeiro (o Naturalismo, que, oposto diretamente aos arroubos espirituais e sentimentalistas dos românticos, se torna conhecido pelo privilégio da matéria, da cor, da sensação, não recuando perante a trivialidade e a brutalidade da humanidade média e baça que analisa através de processos «já se vê, científicos, o estudo dos meios, a orientação das ideias pela fatalidade geográfica, as incoercíveis leis fisiológicas e climatéricas do temperamento e da temperatura, o despotismo do sangue, a tirania dos nervos, a questão das raças, a etologia, a hereditariedade inconsciente dos aleijões de família, tudo, o diabo!» («Advertência» de Eusébio Macário). Neste sentido, o subtítulo em questão parece indiciar o enquadramento da sua narrativa nesta corrente literária, sobretudo se recordarmos, com Camilo, na sua «Nota Preambular», o título e subtítulo da série Les Rougon Macquart: Histoire Naturelle et Sociale d'une Famille sous le Second Empire de Emile Zola, expoente máximo de tal corrente. Apercebendo-se do desabamento do mundo antigo, Camilo, «romântico particularmente sensível à realidade e ao realismo impiedosos da sociedade» (no dizer de Eduardo Lourenço), encara este mundo submetido ao reino do dinheiro através da paródia do estilo da escola naturalista: construções francesas, abuso do imperfeito descritivo, acumulação de adjetivos, pormenor plástico. A ação de Eusébio Macário adequa-se perfeitamente ao espírito político e cultural deste tempo com mais fisiologia do que sentimento. Eusébio Macário, futuro Cavaleiro da Ordem de Cristo, farmacêutico, cabralista caciquista e viúvo de uma personagem feminina apenas referida como «a Canelas», famosa adúltera, procura sobreviver e velar pela honra dos filhos, José Fístula, ex-seminarista, especialista em fados, farmacêutico temporário, aspirante a cirurgião e amante de senhoras casadas, e Custódia, «rapariga pimpona» e donzela casadoira. Ao destino desta família entrelaça-se aquele da família do «brasileiro» Bento Montalegre, emigrante que se «vendera a uma viúva decrépita, rica e devassa, que lhe deixara moagens, fazendas, o casco da sua fortuna», comendador e futuro «barão do Rabaçal», irmão de Felícia, «mulherança frescalhona, de uma coloração sanguínea, anafada, ancas salientes, de trinta e cinco anos», que vivia maritalmente com Abade Justino, mulherengo sem ideal, «estômago com algum latim e muitas féculas». A intriga desenvolve-se com a chegada de Bento, cuja riqueza lhe compra os títulos citados, uma esposa (Custódia), e um marido (José Fístula) para Felícia, que abandona o padre. Este, por sua vez, não demora a encontrar uma nova e prendada companheira. Porém, à sensação de festa inerente à paródia responde o sentimento de náusea e vazio do seu reverso, no qual está inscrita a imagem de «filas cerradas de pinheiros lá em cima nas cumeadas», lembrando «esquadrões de gigantes, pasmados, a olharem para nós, burlescos pigmeus, que andamos cá em baixo a esfervilhar como bichinhos revoltosos nas enormes podridões verdoengas do planeta». Neste sentido, a obra acaba por explorar a miséria estrutural da vida humana, incapaz de se libertar da matéria que lhe está na base.
Quando pensamos nos citados Tempos dos Cabrais, pensamos no período de amolecimento político que sucedeu à violência da guerra civil (1828-1834).
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Como referenciar
Porto Editora – Eusébio Macário na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-12-04 10:09:49]. Disponível em
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