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Garcia de Resende
Escritor português, nasceu em Évora por volta de 1470, de uma família nobre, a que pertencem dois humanistas ilustres: André de Resende e André Falcão de Resende. Contemporâneo de Gil Vicente e de Sá de Miranda, Garcia de Resende desenvolveu na corte o seu talento de escritor e de artista, como poeta, músico, desenhador e cronista, granjeando ainda em vida uma aura de homem culto e ilustre. Morreu em 1536, sendo sepultado na capela de Nossa Senhora que mandara edificar. Personalidade complexa, homem de gosto e cultura, Garcia de Resende impôs-se sobretudo como escritor e compilador. Ainda jovem, é acolhido no paço sob a proteção de um tio materno, desembargador, e nomeado moço de câmara e de escrivaninha por D. João II, merecendo a amizade do monarca. Sob o reinado de D. Manuel, recebe novos privilégios: integra, em 1498, o séquito que acompanha o monarca na viagem à corte dos Reis Católicos; participa, em 1514, na embaixada ao Papa Leão X; é nomeado Cavaleiro da Ordem de Cristo, em 1515; e, no ano seguinte, escrivão da Fazenda do príncipe D. João.
A partir de 1530, fixou residência em Évora para ultimar os seus escritos, leal ao princípio enunciado no prólogo ao Cancioneiro Geral de não continuar a incúria com que os portugueses registam as coisas "dinas de grande memoria", votando-as, assim, ao esquecimento. Nascido do propósito de perpetuar a poesia cultivada nos serões palacianos, as "cousas de folgar e gentylezas", o Cancioneiro Geral, coligido por Garcia de Resende, publicado em Lisboa, em 1516, entroncando na tradição peninsular dos cancioneiros coletivos, oferece um repositório poético muito vasto e literariamente diversificado.
A colaboração de Garcia de Resende no Cancioneiro Geral é quantitativa e qualitativamente das mais salientes. Um dos "ajudantes" mais requisitados em composições coletivas, participa no concurso lançado por Fernão da Silveira ao melhor louvor de Dona Filipa de Vilhena, no refrão lançado pelo conde de Vimioso a "ûa Senhora", no de D. Diogo de Meneses, a Dona Filipa de Abreu, no de D. Diogo a Dona Beatriz de Vilhena, no de Aires Teles a Joana de Mendonça, no de João da Silveira a Dona Margarida Freire, entre muitos outros, não só de teor amoroso e jocoso/amoroso, mas também de maldizer, empenhando-se ainda no fabrico de entretenimentos de corte onde o artifício poético tem uma função exclusivamente lúdica, como é o caso das quarenta e oito trovas compostas por ordem do rei para um jogo de cartas, vinte e quatro femininas e vinte e quatro masculinas, doze de louvor e doze de deslouvor, para serem sorteadas, num serão, pelos cortesãos. Mas é sobretudo nas composições individuais que o talento de Garcia de Resende se destaca. Recriando o molde dos Infernos dos Namorados, as "Trovas que Garcia de Resende / Fez à Morte de Dona Ines de Cas-/tro", uma longa prosopopeia onde Dona Inês narra a história do seu amor e as circunstâncias da sua morte, endereçada por Resende às damas como exemplo máximo de "gualardam de amor", legarão à tradição literária uma imagem do par amoroso como símbolo sublime do amor trágico. Ainda de temática amorosa, as composições mais breves, cantigas, vilancetes, glosas, desenvolvendo frequentemente motes alheios, revelam a capacidade de exprimir num apuramento formal lapidar os paradoxos da vassalagem amorosa. O corpus poético de Resende no Cancioneiro inclui ainda composições de temática social que revelam uma postura crítica relativamente às transformações históricas e políticas que revolucionaram a sociedade, os seus costumes e a sua moral, na viragem do século XV para o século XVI. Na ajuda às trovas de Luis da Silveira a Dom Nuno Manuel, opondo um tempo passado a um tempo presente, onde o conceito de honra já não faz sentido, subscreve uma acusação direta à dissimulação e hipocrisia usadas por certos amigos para sobreviver na corte: "Esperança de proveito / faz fingir mil amizades, / mui cheas de seu respeito, / mui vazias de verdades. / (...) Todos tiram aa barreira / d'haver fazenda e dinheiro, / ser honrado e cavaleiro / nam há ninguem que o queira...".
A mesma denúncia dos desmandos da sociedade é, de forma irónica, mais amplamente desenvolvida na carta enviada a Manuel de Góis sobre novas da corte. Aí, as notícias sobre as damas, sobre as atividades do rei e dos galantes, sobre os últimos feitos da tentativa de conquista no Norte de África deixam subtilmente passar uma sátira aos desmandos da vida cortesã - a ambição, os descontentamentos, a futilidade e, sobretudo, o desconhecimento de princípios como a lealdade, a retidão, a sinceridade:
"Nam há homem de primor / nem quem sirva por amor / senam por ter e mandar, / nem há quem queira lembrar / o proveito do senhor. / (...) Há cá poucas amizades / e grandes competimentos, / custumam pouco verdades, / servem-se muito de / ventos e cousas de vaidades / (...) nem creais que bem fazer / faz ninguem, / se El-Rei nam." As glosas de crítica à vida de corte acabam por dar corpo à afirmação individual de um eu oposto aos outros, colocado na charneira da mudança dos tempos, mas fiel a um Portugal já passado, pois, indiferente a todas as novas que relata, Resende permanece o mesmo: "Nunca mais sahi daqui / ûa hora nem parti / de servir e d' aguardar / e acerca de medrar / tal m' estou qual me naci."
Prepara-se, assim, o terreno para a composição de uma obra de espiritualidade que conheceu ainda em vida do autor três edições sucessivas, o Breve memorial dos pecados e cousas que pertençem há confissam hordenado por Garcia de Resende fidalguo da casa del Rei nosso senhor. Trata-se de um guia penitencial redigido provavelmente em coautoria com D. Jorge de Almeida, bispo de Coimbra, e que apresenta várias particularidades de especial importância para a história do sentimento religioso em Portugal no início do século XVI. Destinado a leigos, este primeiro "memorial dos pecados" em língua vulgar assume, no questionário, a enunciação do próprio penitente que, ao realizar o seu exame de consciência, percorre com minúcia todas as circunstâncias pelas quais poderia ter incorrido em pecado, oferecendo-nos, em simultâneo, um testemunho do estado da disciplina penitencial em Portugal, no momento da Reforma protestante, e um eco dos problemas e inquietações da mentalidade quinhentista. Com efeito, o editor do Lyvro das Obras de Garcia de Resende, impresso postumamente, em 1545, apresenta-nos um autor polígrafo, coligindo nesse volume a Chronica / que trata da vida, e grandissimas / virtudes, e bondades, magnanimo esforço, excellentes / costumes, e manhas, e claros feytos do Christianissimo / Dom Joam o Segundo deste nome, e dos Reys de Portu- / gal o decimo tercio de gloriosa memorea, os pequenos relatos históricos da Entrada Del Rey Dom Manoel em Castella e a Hida da Infanta Dona Beatriz Pera Saboya, e textos de teor religioso, a Paixão Segundo os Quatro Evãgelistas e Sermão sobre os três Reis Magos. A reedição do Lyvro em 1554, conservando os registos históricos e suprimindo os textos espirituais, oferece-nos ainda o longo poema Miscellanea de Garcia de Resende, e variedade de historias, costumes, casos, e cousas / que em seu tempo aconteceram. Redigida em Évora entre 1530 e 1533, apropriando de forma original a fonte manuscrita de Rui de Pina, e movida pelo desejo de retribuir com esta vida e narração de virtudes, os "bons ensinos" e apreço com que o monarca paternalmente o distinguira (cf. cap. CCI), a Crónica de D. João II esboça um retrato psicológico do monarca, resultado de notas e lembranças cumuladas ao longo de uma convivência íntima. Precedida de uma pequena súmula sobre as "Virtudes/, Feições, Costumes, e Manhas..." do monarca e cruzando o registo biográfico, com os registos histórico, novelístico, encomiástico e elegíaco, a leitura da Crónica de D. João II nutre-se de um interesse histórico, mas também literário, dando provas, em capítulos como o da morte do Príncipe Afonso, do seu talento como prosador. Composta nos mesmos anos, a Miscelânea dá conta, numa longa retrospetiva em verso, anaforicamente sugerida pelo vocábulo "Vimos...", dos grandes acontecimentos da história europeia e portuguesa ocorridos entre meados do século XV e primeiros decénios do século XVI. Designada por Veríssimo Serrão (1973), como o "testamento" do autor, a Miscelânea testemunha uma consciência profunda das mudanças que acompanharam o nascimento da época moderna: as viagens de descoberta, a constituição de impérios, a emergência do capitalismo, o desmoronar do sistema feudal, o desenvolvimento da cultura palaciana, a ascensão de novas classes dominantes e novos valores, o aparecimento da imprensa, etc. Confluindo de certo modo na temática do desconcerto do mundo, resolvida na crença de que só a fé em Deus dá sentido à sucessão de "novidades", a Miscelânea nasce, acima de tudo, do desejo humanista, já enunciado no prólogo ao Cancioneiro, de registar em vulgar todos os feitos que, mau grado a sua "mundana gloria", não devem ser esquecidos, abrindo inconscientemente caminho para uma glorificação da epopeia portuguesa, ainda por fazer:
"Se fallara dos passados / dinos de grandes memorias / capitães tam esmerados, / de fectos tam signalados / fezera grandes historias; / has quais deixo de fazer; / pois ninguem non quer dizer / louvores de Portugal; / que fora fecto immortal, / se ouver quem escrever." (p. 361).
A partir de 1530, fixou residência em Évora para ultimar os seus escritos, leal ao princípio enunciado no prólogo ao Cancioneiro Geral de não continuar a incúria com que os portugueses registam as coisas "dinas de grande memoria", votando-as, assim, ao esquecimento. Nascido do propósito de perpetuar a poesia cultivada nos serões palacianos, as "cousas de folgar e gentylezas", o Cancioneiro Geral, coligido por Garcia de Resende, publicado em Lisboa, em 1516, entroncando na tradição peninsular dos cancioneiros coletivos, oferece um repositório poético muito vasto e literariamente diversificado.
A mesma denúncia dos desmandos da sociedade é, de forma irónica, mais amplamente desenvolvida na carta enviada a Manuel de Góis sobre novas da corte. Aí, as notícias sobre as damas, sobre as atividades do rei e dos galantes, sobre os últimos feitos da tentativa de conquista no Norte de África deixam subtilmente passar uma sátira aos desmandos da vida cortesã - a ambição, os descontentamentos, a futilidade e, sobretudo, o desconhecimento de princípios como a lealdade, a retidão, a sinceridade:
"Nam há homem de primor / nem quem sirva por amor / senam por ter e mandar, / nem há quem queira lembrar / o proveito do senhor. / (...) Há cá poucas amizades / e grandes competimentos, / custumam pouco verdades, / servem-se muito de / ventos e cousas de vaidades / (...) nem creais que bem fazer / faz ninguem, / se El-Rei nam." As glosas de crítica à vida de corte acabam por dar corpo à afirmação individual de um eu oposto aos outros, colocado na charneira da mudança dos tempos, mas fiel a um Portugal já passado, pois, indiferente a todas as novas que relata, Resende permanece o mesmo: "Nunca mais sahi daqui / ûa hora nem parti / de servir e d' aguardar / e acerca de medrar / tal m' estou qual me naci."
Prepara-se, assim, o terreno para a composição de uma obra de espiritualidade que conheceu ainda em vida do autor três edições sucessivas, o Breve memorial dos pecados e cousas que pertençem há confissam hordenado por Garcia de Resende fidalguo da casa del Rei nosso senhor. Trata-se de um guia penitencial redigido provavelmente em coautoria com D. Jorge de Almeida, bispo de Coimbra, e que apresenta várias particularidades de especial importância para a história do sentimento religioso em Portugal no início do século XVI. Destinado a leigos, este primeiro "memorial dos pecados" em língua vulgar assume, no questionário, a enunciação do próprio penitente que, ao realizar o seu exame de consciência, percorre com minúcia todas as circunstâncias pelas quais poderia ter incorrido em pecado, oferecendo-nos, em simultâneo, um testemunho do estado da disciplina penitencial em Portugal, no momento da Reforma protestante, e um eco dos problemas e inquietações da mentalidade quinhentista. Com efeito, o editor do Lyvro das Obras de Garcia de Resende, impresso postumamente, em 1545, apresenta-nos um autor polígrafo, coligindo nesse volume a Chronica / que trata da vida, e grandissimas / virtudes, e bondades, magnanimo esforço, excellentes / costumes, e manhas, e claros feytos do Christianissimo / Dom Joam o Segundo deste nome, e dos Reys de Portu- / gal o decimo tercio de gloriosa memorea, os pequenos relatos históricos da Entrada Del Rey Dom Manoel em Castella e a Hida da Infanta Dona Beatriz Pera Saboya, e textos de teor religioso, a Paixão Segundo os Quatro Evãgelistas e Sermão sobre os três Reis Magos. A reedição do Lyvro em 1554, conservando os registos históricos e suprimindo os textos espirituais, oferece-nos ainda o longo poema Miscellanea de Garcia de Resende, e variedade de historias, costumes, casos, e cousas / que em seu tempo aconteceram. Redigida em Évora entre 1530 e 1533, apropriando de forma original a fonte manuscrita de Rui de Pina, e movida pelo desejo de retribuir com esta vida e narração de virtudes, os "bons ensinos" e apreço com que o monarca paternalmente o distinguira (cf. cap. CCI), a Crónica de D. João II esboça um retrato psicológico do monarca, resultado de notas e lembranças cumuladas ao longo de uma convivência íntima. Precedida de uma pequena súmula sobre as "Virtudes/, Feições, Costumes, e Manhas..." do monarca e cruzando o registo biográfico, com os registos histórico, novelístico, encomiástico e elegíaco, a leitura da Crónica de D. João II nutre-se de um interesse histórico, mas também literário, dando provas, em capítulos como o da morte do Príncipe Afonso, do seu talento como prosador. Composta nos mesmos anos, a Miscelânea dá conta, numa longa retrospetiva em verso, anaforicamente sugerida pelo vocábulo "Vimos...", dos grandes acontecimentos da história europeia e portuguesa ocorridos entre meados do século XV e primeiros decénios do século XVI. Designada por Veríssimo Serrão (1973), como o "testamento" do autor, a Miscelânea testemunha uma consciência profunda das mudanças que acompanharam o nascimento da época moderna: as viagens de descoberta, a constituição de impérios, a emergência do capitalismo, o desmoronar do sistema feudal, o desenvolvimento da cultura palaciana, a ascensão de novas classes dominantes e novos valores, o aparecimento da imprensa, etc. Confluindo de certo modo na temática do desconcerto do mundo, resolvida na crença de que só a fé em Deus dá sentido à sucessão de "novidades", a Miscelânea nasce, acima de tudo, do desejo humanista, já enunciado no prólogo ao Cancioneiro, de registar em vulgar todos os feitos que, mau grado a sua "mundana gloria", não devem ser esquecidos, abrindo inconscientemente caminho para uma glorificação da epopeia portuguesa, ainda por fazer:
"Se fallara dos passados / dinos de grandes memorias / capitães tam esmerados, / de fectos tam signalados / fezera grandes historias; / has quais deixo de fazer; / pois ninguem non quer dizer / louvores de Portugal; / que fora fecto immortal, / se ouver quem escrever." (p. 361).
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Como referenciar
Porto Editora – Garcia de Resende na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-12-04 16:39:13]. Disponível em
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