Quem me dera ser onda
Quem me dera ser onda (1982), da autoria do escritor angolano Manuel Rui (1941-), é, aparentemente, uma história infantil. De facto, tendo em conta que as personagens principais são duas crianças e um animal - um porco - é natural que a primeira impressão dada pela obra seja o relato de uma história infantil.
O argumento principal centra-se exatamente nestas figuras - duas crianças e um porco. Delas nasce uma relação que era perfeitamente possível num tempo já esquecido pelos adultos desta sociedade tão alienada pelo sistema colonial - aquele tempo em que homens e animais conviviam em plena harmonia, numa relação extremamente humana.
Agora, num tempo e numa sociedade em que os adultos perderam, por força de um sistema alienante, a memória desses tempos, resta às crianças (que serão o futuro daquela nação) restabelecer os laços com esse passado e reatar esse sentimento de fraternidade e harmonia entre os dois mundos: o mundo dos homens e o mundo dos animais. Daí que Quem me dera ser onda nos transporte para uma fortíssima relação dos miúdos com o porco - relação essa em que os adultos não entram. O mundo dos dois é de tal forma unido que chega mesmo a confundir-se, de tal maneira que o animal é visto por eles como mais um membro da família. E sofrem. Sofrem por não entender como é possível que alguém que começa a fazer parte de uma família possa, no fim, ser morto para alimentar essa mesma família.
Na verdade, a figura fundamental que perpassa todo este texto é a ironia e é-o exatamente pelo facto de se incorporar a este texto, aparentemente simples e despretensioso, uma incrível paródia política e uma cerrada crítica à sociedade de Luanda da época, que esqueceu e apagou todos os valores antigos.
Quem me dera ser onda deve ser visto como um autêntico relatório dos problemas e evidências que merecem atenção pela preocupação que despertam: ao longo da leitura somos embalados e como que convidados a entrar num mundo citadino definitivamente alienado, em que reina a confusão de situações sociais, culturais e vivenciais que há que revelar, estudar e entender como factos a rever - a alienação cultural, social e política é-nos dada através da figura do pai das crianças que não entende certas preocupações humanas e se revela completamente desintegrado do espaço social representado pelo prédio e mesmo pela cidade em que vive.
Há que entender esta alienação nos seus diferentes aspetos: homens, mulheres e crianças habituados à vida nos musseques veem-se, repentinamente, "transferidos" para andares em prédios centrais na cidade de Luanda. Confiná-los (a eles e a todos os "bens" que, por norma, tinham nas suas casas do musseque) ao espaço reduzido de um apartamento (erigido em altura, sem terra à volta, onde não sentiam os pés na terra, como era seu hábito) é forçá-los a uma situação social para a qual não estavam preparados nem tinham recebido qualquer instrução.
Para além disso, retrata também a marcante imagem das classes mais baixas que, famintas, aproveitam os restos dos faustosos almoços dos hotéis deitados no lixo; há ainda a figura dos aproveitadores do sistema que, a qualquer preço, tentam ascender socialmente; a crítica à educação, ao sistema educativo da época, é também aqui retratado através da figura dos Delegados Escolares responsáveis pela análise de textos escritos por estas crianças, revelando, também eles, uma fortíssima alienação e mesmo desconhecimento ao não entenderem e, muito menos, aceitarem que duas crianças possam fazer de um porco uma personagem tão principal, um herói, detentora de semelhantes façanhas tão insultuosas para uma sociedade como era a sua.
"Quem me dera ser onda" é a frase final desta novela que recebe o mesmo nome. É uma frase marcante, como o é todo o texto, e, dita por uma criança, revela que na hora de matar o seu maior amigo - o porco - esta criança deseja ardentemente não sentir, não pensar, ser um ser inanimado como a onda. Tudo, para não padecer como estava a padecer pela enunciada morte incompreensível de um ser querido.
Pela mensagem importante e acusatória que esta novela fez passar, Manuel Rui viu Quem me dera ser onda ser galardoada com o importante Prémio Nacional Agostinho Neto, que lhe reconhece o alerta que fez passar e premeia esta chamada de atenção a um povo que perdia, dia a dia, a sua mais profunda autenticidade.
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